sexta-feira, 22 de março de 2013

O carnaval de 1982 - O Dodge Dart: semana de carnaval (terça-feira, fim-de-festa)

 

Na terça-feira, último dia de carnaval, as estripulias repetiram-se sem mais qualquer novidade, Marta e Bebel, perdidas pelas ruelas da cidade alta, de vez enquanto apareciam no carro para descansar; Alice, Paulinho, incansáveis, continuavam  atrás dos blocos, e os demais no carro navegando nas cervejas ou tirando onda pelos becos e buracos de ruas .
No final da noite o carro foi retirado, com muita dificuldade, do local onde estava estacionado: precisou ser empurrado pois a bateria não pegava. Para empurrar foi um sacrifício, além das forças escassas de cada um, uma chuva torrencial, misturada com areia e detritos do carnaval, enlameava toda a rua dificultando a ação.    
Já era alta madrugada quando o carro levantou âncoras da praça do Carmo, sob a tutela de Petrônio. Voltamos pela beira-mar, imbicamos pela av. Presidente Kennedy e caminhamos mais uns 2 km até dobrar a esquerda, seguindo reto até chegar ao nosso destino final: a avenida dos Bultrins. Na época esse era o único caminho de volta para Recife e era sofrível, visto que como única porta de saída o engarrafamento era monstruoso.
A chuva era forte e o frio chegou de vez principalmente para quem estava no lado de fora do carro. Dependendo do humor da chuva, saíamos e ficávamos no teto e mala e quando a chuva voltava forte entrávamos no carro. 
Petrônio já tinha assumido como piloto oficial desde o primeiro dia de carnaval quando percebemos que Carliunhos entornava todas as cervejas e ficava sem a mínima condição de voltar guiando a máquina. Nosso Petrõnio tinha o perfil ideal: além de não beber, dirigia bem e conhecia razoavelmente  bem motor, bateria e similares.
A chuva continuava firme quando chegamos nos Bultrins, e o engarrafamento também. Nesse momento foi que descobrimos que a triste ideia de tirar os vidros do carro, principalmente os da frente, foi de uma infelicidade sem igual. Sem esses, além de não melhorar coisa nenhuma a velocidade do carro, como foi previsto por alguém que não lembramos mais nesse momento, piorava mais a situação em momentos de chuva. Nessa situação o vidro que poderia aparar a água, o vento e o frio, dava lugar ao espaço vazio onde essas inteperies da natureza entravam sem piedade no interior do barco. 
Petrõnio navegava com cuidado com o leme bem seguro; o vento frio e a chuva nos acompanhavam; era terrível e a escapatória era berrar, beber, cantar, e amaldiçoar o criador de ideia tão descabida.
A situação de serenidade de Petrônio mudou na primeira parada de congestionamento nos Bultrins. Quando paramos, ele largou o volante, saiu do carro, e deu sem mais nem menos um pinote por cima do capô: parecia possuído pela mesma entidade que tomou posse dos corpos dos maloqueiros no caso do charuto de Alexandre e Carlinhos. Após os pinotes, entrou no carro, ajustou seu óculos escuro, tomou posição no volante e deu prosseguimento a via cruzes em marcha lenta devido ao engarrafamento. O barco pegou uma área mais livre e o motorista enfiou o pé no acelerador, aí sim o frio foi de corta as orelhas, berros e impropérios foram ecoados de dentro da lata velha:

- Petrônio, PUT%$ Q%$ PAR%$ navega mais devagar esse troçoooo, que vento da POR$%$# !!! o frio tá lascando as nossas ventasssss.......gritava Carlinhos rapidamente recuperado da sua cachaça.
- Cala boca primÔOO, tá legal assim, barato total ....... bota gas nessa barca PetrônioÔOO - gritava Bebel em extase..
- Fica quieta Bebel senão seu carnaval vai acabar agora mesmo, lembre-se que tô tomando conta de vocêêê, falava Carlinhos completamente perdido no tempo.
- Te liga primôoo, o carnaval já acabou e nem tomasse conta de tu, quanto mais de mim, fiz a farra e cê  nem viuuu. Ai, Ai,Ai,Ai,Ai,Ai, vou contar para Tio fernandooooÔÔ ..kkkkkkkkkkuauauauaua ...
- Galeraaaaaaa aqui tem loló e vodka com quick, vamos mandar ver para esquecer o frio...Martinha se esguelava de algum lugar de dentro do barco..... 
- Obaaaa !!!!! a vodka do cantil que corta boca e a loló que rasga roupa !!!!! -  ecoava o coro de malucos em êxtase...
- quem quer um charutinhoooooo cubano....???!!!! kkkkkk - berrava Alexandre perdido na multidão... 


Era uma casa de terror ambulante ; a única forma de relaxar e esquecer o frio era usar a proteção dos corpos, além, é claro, da bebida. Era uma amontoado sem igual de gente: eu, Petrônio, Marta, Bebel, Alice, Alexandre, Carlinhos, Paulinho, Marcelo, Alexandre (amigo de Alice), gordo pinica e mais alguns que nesse momento do tempo não temos mais como recordar, enfiados e embolados dentro do velho Dodge usando esse corpo-a-corpo como cobertor e casacos de peles naturais.
Entramos em novo engarrafamento e o carro parou novamente. Petrônio dessa vez, não pinotou sob o capô mas pior, deu um flecheiro em direção a rua repleta de carros engarrafados e lascou várias cambalhotas no meio do asfalto, enquanto a galera berrava e assistia em delírio o espetáculo aloprado; após a apresentação voltou rapidamente para dentro do carro. Era impressionante: de repente ele se transformava, fazia suas acrobacias na rua e depois voltava calmamente ao volante e prosseguia sua função de guia oficial na mais completa paz e serenidade...
O carro voltou a caminhar por um trecho mais rápido. Novas gritarias partiam de dentro do navio. De repente alguém começou a cantar a velha marchinha de carnaval, a famosa "marcha do remador",  remodificando levemente a letra adequando assim a situação atual do barco:

- SE ESSA PORRA NÃO VIRAR EU CHEGO LÁ, OLÊ..OLÊ..OU LÁ  .. EU CHEGO LÁ ... 

E o refrão virou hit do momento e a marcha continuou sob esse ritmo.

Mais para frente alguém gritou:

- Cala boca PESSOALLLL senão vai acordar Petrônio !!

Foi uma frase que ecoou até os dias de hoje.  Ninguém tinha observado o perigo que estávamos passando: Petrônio estava de óculos escuro, chovia, ventava, a iluminação do carro não era adequada e a da avenida menos ainda, e para completar não tínhamos vidro de proteção; o vento soprava na cara. Nosso amigo estava calado, mudo, mexia apenas alguns dedos das mãos, ajustando levemente o leme, talvez por reflexo condicionado. Ele poderia estar dormindo mesmo. Foi aí que a gritaria aumentou oe  refrão foi acrescentado em mais  algumas linhas:

- SE ESSA PORRA NÃO VIRAR OLÊ OLÊ OU LÁ ..EU CHEGO LÁ
- Cala boca senão Petrônio ACORDA !!
- SE ESSA PORRA NÃO VIRAR OLÊ OLÊ OU LÁ .. EU CHEGO LÁ 
- Cala boca senão Petrônio ACORDA !!

O trânsito aliviou então o motorista empurrou o pé e a barca seguiu em boa velocidade ao som do refrão, enquanto chovia prego por todos os lados. As luzes dos postes que iluminavam de tempo-em-tempo o interior do veiculo aloprado, juntamente com os berros, músicas e cervejas voadoras, provocavam um efeito alucinante e psicodélico, um trem-fantasma-ambulante: lembrava a situação que passamos, eu e Alexandre, em 1978, no carro maluco de Dorinho, que nos conduziu do Pina a Candeias em 10 minutos..... 
O comandante seguia firme de óculos escuro, impassível e orgulhoso pela sua responsabilidade em conduzir um bando de aloprados.
Cruzamos toda a Agamenon Magalhães assim, no ritmo que Deus no permitiu cantando a marchinha de carnaval reinventada, passamos pela Avenida Norte, deixamos Alice e seu amigo Alexandre e seguimos em frente até chegarmos no porto final: a rua Canápolis. Estacionamos no quintal de Marcelo.
Fim de carnaval ; fim-de-festa. O carro, ou melhor o que existia ainda de carro estava completamente indirigível. Seria uma perda de tempo manter esse carro por mais um ano esperando o próximo carnaval. Procuramos o primeiro ferro-velho que apareceu e vendemos a barca pelo primeiro preço que foi dado; o resultado da venda nos permitiu ir na rua da Concórdia e comprar alguns instrumentos musicais: um reco-reco, tamborim, pandeiro, e um pequeno bumbo.
A posse desses instrumentos nos permitiu sermos convidados para algumas festas (uma delas foi na casa de um dos amigo médico de Martinha, aquele mesmos da loló....) imaginando os anfitriões que a equipe de músicos tinha algum dom musical o que se comprovou mais tarde ser uma aposta completamente fora de propósito, pois de música a maioria só entendia da "marchinha do remador".

No sábado pós quarta-feira de cinzas nos reunimos pela última vez na casa de praia de Dr.Tenório e
Dona Mariinha, pais de Marcelo e Paulinho, que nos presenteou com um almoço em comemoração celebrando o fim-do-carnaval. Isso ficou registrado nas fotos a seguir onde pode se ver os atores e atrizes principais em plena evolução musical: eu, Alexandre, Carlinhos, Marcelo, Petrônio, Bebel e Martinha, cada um com seu instrumento resultante da venda do carro, simulando uma orquestra desincronizada.

Essa foi a última vez que esse grupo se reuniu para um evento carnavalesco ou semelhante. Nos dois anos seguintes ainda fizemos bons carnavais, com novos carros incrementados e pintados da mesma forma, um Galaxie e depois um Dodge, mas jamais seria como o famoso carnaval de 1982. Tudo contribuiu para o sucesso desse primeiro carro: a inovação de um carro todo pintado foi fundamental, mas o mais importante é que no grupo eram todos grandes amigos apenas se divertindo, não existia namorados, casados ou qualquer compromisso semelhante: cada uma fazia o que bem entendia da sua vida e do carnaval, respeitando é claro, um tênue limite de ordem e moral.

A ideia de escrever esse contos foi manter sempre viva as imagens de uma época sem igual que ainda teima em não desaparecer na nossa imaginação. Nunca vou esquecer quando em um belo dia, numa festa de aniversário,  Dona Mariinha falou uma frase a respeito disso tudo que reflete muito bem o que passamos: "Nós eramos felizes e não sabíamos". A felicidade que ela falava era a liberdade, o descompromisso de grandes amigos, solteiros e preocupados apenas em se divertir.  
O tempo passou, crescemos, seguimos o caminho adiante pela vida, casamos, alguns se separaram, tivemos filhos - já tem até gente que passou a ser chamado de avô, enfim, agora também somos  felizes e já sabemos ..... 

 
A banda aloprada no almoço na casa dos pais de Marcelo.




No almoço






Na casa de Marcelo tomando conta de Bebel.























2 comentários:

  1. Brilhante narrativa....nada vai ser capaz de superar a alegria desses jovens amigos; divertindo-se sem qualquer maldade, e brincando o melhor carnaval te todos os tempos. Inesquecível! Parabéns, amigo, por nos brindar com essa obra maravilhosa e inseparável de nossas vidas.

    Carlos Frederico Vital

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    1. Obrigado pelas palavras !! vc acertou, o segredo foi exatamente esse: jovens amigos divertindo-se sem qualquer maldade, o que fez o grupo brincar o melhor carnaval de todos os tempos. É isso, vamos divulgar tudo isso para os nossos filhos e netos..rsrsrs.
      Abs.
      Du

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