sexta-feira, 22 de março de 2013

O carnaval de 1982 - O Dodge Dart: a compra e a preparação.




Não sei exatamente o dia e nem tampouco que horas se deu o nascimento da incrível ideia de comprar um carro velho  para o carnaval, só sei que o iluminado descobridor do famoso Dodge Dart de procedência duvidosa foi nosso amigo Carlinhos.
O Dodge Dart foi um automóvel desenvolvido nos EUA pela divisão Dodge da Chrisler  entre 1960 e 1976, sendo que aqui no Brasil sua produção continuou até 1981 com versões que, na época, tinha o mais possante motor já fabricado no país, um V8 que chegava a uma velocidade máxima de 180 km; era considerado um carro de Luxo que concorria com o Ford Galaxie e o Chevrolet Opala.  
No início de ano de 1982 nosso amigo me disse que, durante suas andanças pela cidade, tinha visto um carro branco enorme num ferro-velho lá pelas bandas de Apipucos, parecia em bom estado, pelo menos tinha portas, pneus, vidros, etc,  e que poderia servir para uma boa farra; assim lançou a brilhante pergunta:  - que tal comprarmos essa maravilha para o carnaval ?
A questão foi repassada para os amigos mais próximos:  Alexandre, Marcelo e Petrônio, que  toparam na hora, com exceção do Marcelo (aquele mesmo da aventura do fusca bege e as domésticas.....), que se mostrou cético com o projeto quando lembrou que a primeira coisa a fazer nesses casos seria gastar dinheiro para comprar e depois mais alguns trocados para resolver qualquer problema mecânico. Mesmo assim, após pressão, conseguimos seu apoio formal à tresloucada empreitada. 
Nosso amigo Aníbal (um dos personagens principais dos contos do Pina....) e já morando em Salvador nesse início de 1982, e obviamente longe das decisões, não foi consultado e consequentemente não vimos a cor do seu dinheiro; tornou-se assim convidado especial entrando na festa somente a partir do sábado de carnaval.        
Numa bela tarde partimos em direção ao local onde encontrava-se a relíquia. Paramos num ferro-velho suspeito na beira do açude de Apipucos, Casa Forte, descemos e fomos ao encontro do OLNI (objeto de locomoção não identificado) que Carlinhos tinha visualizado como possível fonte (e foi.....) de farra no carnaval. O dono do negócio extremamente  mal-encarado se apresentou como empresário do ramo da metalurgia e automobilismo e rapidamente nos levou ao encontro do OLNI: era um Dodge Dart bem acabadinho, jogado as traças, cor branca, com uma placa ainda decente (MD8524), portas que milagrosamente  abriam (como pudemos comprovar na apresentação...). Apesar de tudo isso o empresário nos garantiu: - o bicho anda e o melhor de tudo tem documento em dia; tirou do bolso uma bolinha de papel amarelado que em segundos transformou-se num documento emitido pelo DETRAN. Abriu a tampa do carro e nos mostrou o motor e em seguida a enorme mala, depois entrou no seu barracão e voltou com uma bateria velha em mãos, colocou no lugar, ajustou, entrou no carro, virou a ignição e o bicho pegou na hora. Surpresa geral !!!!
Após um breve bate-papo com o empresário voltamos para casa decididos a comprar o bagaço de carro. Agora entrava em ação a próxima etapa: convencer o resto da turma nessa arriscada decisão. Eu já trabalhava e era o único que tinha dinheiro em mãos para gastar; Carlinhos teria que recorrer a seu pai, Petrônio idem, Alexandre seria um pouco mais difícil, teríamos que convencê-lo a gastar seus tostões do crédito educativo, que oficialmente seriam destinados aos seus estudos mas na verdade era redirecionado para suas amadas cervejas;  por fim , Ah, esse seria o desafio maior !!!: Marcelo; esse era o avesso da belíssima música de Paulinho da Viola "dinheiro na mão é vendaval, é vendaval, na vida de um sonhador, de um sonhador..."
Depois de intensas discussões fechamos a compra e partimos em direção ao local assombrado onde o carro repousava a espera de algum maluco com dinheiro na mão. Chegamos, pagamos, pegamos o documento e partimos com o possante para o seu novo lar:  o quintal da casa de Marcelo. 
Primeira decisão em conjunto: quem iria dirigir a máquina durante o carnaval ? 
Eu dirigia desde 1978, Marcelo e Aníbal também mas nenhum dos três era especialista no volante. Alexandre era menos experiente ainda; o único carro que possuiu foi um fusca branco que não andava por estar sempre quebrado, em virtude disso passava noites ao relento, aberto as intempéries da natureza, o que levou as plantas a o possuir (alguém lembra do filme trash "os invasores de corpos"??), criando raízes, tomando conta do motor e adjacências e tornando o autoMOVEL em autoIMOVEL. Enfim, os quatro estavam descartados. Sobraram Carlinhos e Petrônio. O primeiro era o motorista precose do grupo. Já em 1978, na fase áurea das nossas farras do Pina, o amigo com 16 anos já dirigia com desenvoltura e segurança, diariamente, da sua casa na tamarineira até o Pina onde encontrava-se o foco dos "embalos de sábado à noite". Seu único problema era a cerveja pois depois da primeira as demais vinham por tabela e só parava quando a situação já era desesperadora, ou seja, quando estava estatalado no chão. Precisávamos analisar essa situação com calma.... A outra opção seria Petrônio que também já era um bom motorista porém como não fazia parte constante do grupo desconhecíamos seu talento ao volante mas sabíamos por terceiros que o cabra era desenvolto e  tinha uma qualidade importante nesses casos: não bebia.
Depois de intensos debates ganhou a primeira opção com ressalvas, ficando Petrônio para um previsível substituto para as noites de cachaças de Carlinhos (que sempre eram as primeiras....). Também descobrimos que ele era bom em mecânica por isso ficou com o cargo de assistente técnico para prováveis problemas com o motor e com o que restava do sistema elétrico da máquina.
Decido o motorista partimos para dar uma concertada no possante: arrumamos bons pneus, foi dado uma geral no motor e o guardamos a sete-chaves no terreno enorme que ficava atrás da casa de Marcelo, que na verdade era o quintal da casa pois tinha uma passagem ligando os dois espaços.
Na primeira semana da nova vida do Dodge surgiram as primeiras sugestões:
 
- vamos pintar o bicho ..?   
- que tal tirar a mala para dar espaço para colocar mais gente dentro ..? - gritou um ente perdido
- mais outro sugeriu, que tal arrancar as portas para dar mais adrenalina espiando o chão passar perto..? - gritou mais um outro sócio....
 
E a ideia mais estapafúrdia de todas. Alguém mencionou (não sei quem...):
- vamos tirar todos os vidros para o carro navegar mais rápido ..?
 
Entre uma cerveja e outra passamos o sábado pintando o carro. Todo tipo de sugestão era aceita, menos palavrão, enfim tudo era festa. Saiu várias pérolas:
 
"Marcelo Tarado"; "Marcelo maníaco sexual"; "Ana Kátia tamborete" (amiga de Marta que navegou no carro); tinha um monte de "CRAU", "CREU", vários "Bebel" (prima de Carlinhos e ativa participante dessa farra), "Gordo Pinica" (mais um amigo que participou do evento,  como convidado), "Loch Ness", "Os Queijudos", "Donzelos", etc, etc.
 
O carro era branco e foi completamente pintado, não faltou pedra sob pedra, ou melhor espaço sob espaço. Colocamos uma caveira bem grande na tampa do motor e nos demais espaços um monte de riscos coloridos e frases desconexas como as citadas anteriormente. O resultado final foi retumbante, o bólido virou um sucesso.  
Em seguida arrancamos a mala e as portas dando assim mais espaço para os prováveis convidados de última hora. O retoque final foi aquela ideia estapafúrdia de eliminar os vidros. Segundo quem sugeriu (identidade desconhecida.....) isso era fundamental para melhorar o equilíbrio do carro nas curva e adquirir maior velocidade nas retas. Os vidros foram retirados e o  que se constatou  na prática foi um desastre completo que terminou tornando-se uma comédia (descreveremos em outra oportunidade esse circo....).
A primeira foto do carro foi tirada ainda quando consertávamos os contatos da bateria (que inexplicavelmente havia falhado....), atividade essa designada para o nosso mecânico de plantão Petrônio. Minha irmã Martinha aproveitou a oportunidade para desfilar no teto tendo como platéia os sócios fundadores, além de alguns familiares que espiavam através dos muros vizinhos (a casa de Carlinhos é vizinha até hoje desse terreno...).
 
 
 

Martinha esquentando as turbinas, Petrônio (camisa azul e short branco) de olho no motor
e Carminha (mãe de Carlinhos) espiando por cima do muro.

   
 
  
Tudo pronto. A máquina estava preparada para seu primeiro desafio: o desfile das "Virgens de Olinda".
   
 
  
  
   

O carnaval de 1982 - O Dodge Dart: indo para as Virgens de Olinda.


Após algumas semanas de espera finalmente a máquina estava pronta para dançar o frevo. O dia escolhido foi o desfile das Virgens de Olinda que desde aquela época era oficialmente agendado para uma semana antes do carnaval. 
Num belo domingo ensolarado, pelo menos estava assim quando saímos, nos reunimos no quintal da casa de Marcelo visando efetuar os preparativos para o grandioso evento. 
Eu, Marta, Carlinhos, Paulinho e Marcelo, já estávamos de plantão desde cedo, já que morávamos ao lado da residência do possante; da mesma forma Isabel, transportada direto do RJ, que era hóspede de Carlinhos, já batia seu ponto cedinho da manhã;  Petrônio, nosso backup de motorista e mecânico oficial, vizinho de bairro, também chegou rapidinho; em questão de poucos minutos chegavam Alexandre e Andréa, diretos do nosso conhecido e palco de tantas aventuras, Pina . Depois dos representantes oficiais apareceram ainda Ana Kátia, amiga de Marta do Marista e Cristina amiga de Paulinho. Apesar de morar na rua ao lado Ricardo ("o gordo pinica") e sua irmã foram um dos últimos a se juntar ao carro. 
O motorista oficial Carlinhos ligou o carro e cadê sinal do motor ?!. nenhum ruído ao não ser o click da chave na ignição. Primeiro problema. Rapidamente foi convocado o veterinário de plantão Petrônio que prontamente entrou em ação abrindo o capô e concentrou-se no problema. Depois de uma breve limpeza nos cabos da bateria a máquina deu sinal de vida e o motor v8 mostrou todo o seu poder (HRUMMMM, HRUMMMMM, HRUMMMMMMr.....). Lentamente foi dado ré e aos poucos o possante foi atravessando todo o terreno, cruzou o portão de saída, posicionando-se, através das mãos ainda sóbrias de Carlinhos, em posição de embarque na rua.   
 

O carro pronto para embarque

  





Dr. Fernando aconselhando Carlinhos.



 
Surge então nosso saudoso e querido Dr. Fernando (pai de Carlinhos....) que ao observar a turba de jovens, possuídos pelos espírito de momo, animadamente preenchendo todos os espaços do carro entre os assentos dianteiro e traseiro, teto e a mala, resolveu se aproximar e com a maior boa vontade ratificou seus conselhos para ninguém menos que Carlinhos. O papo foi mais ou menos assim:

- meu filho você é o líder do grupo, está dirigindo, então tome cuidado com o trânsito ..
- pessoal tá todo mundo aí ? posso sair ?
- filho, checou os freios ?
- galera, e as cervejas, estão levando ? cadê a batida de Vodka ?
- Carlos Frederico, você tá ouvindo ??
- Beleza, beleza pessoal !! já tô babando por causa dessas cervejas..
- Carlos Fredericoooooo, você tá surdo ??!! ouviu o que falei.
- Sim, pai, para ficar de olho na bateria do carro , né ?
- Esqueceeee, Petrôniooooo, fica de olho no trânsito, ok ?
- ok, Tio, deixa comigo.
- Carlos Frederico, cadê sua prima Izabel ?
- Bebel, cadê vocêêêêê, onde se meteuuuuu por%%$a ??
- Oi eu aquiii, tô ao seu lado primÔÔÔ, tá cego ou já entornou todas as cervejas ou as batidas de Vodka... kkkkk.. ???
- Ah !!  ce tava tão quietinha que não te vi, acho que é esse óculos escuros que não me deixa ver direito...
- pelo amor de Deus, Carlos Frederico, tome conta da sua prima, ela é de menor..
- 14 anos é de menor pai ?
- claro que é, você tá doido, de olho ok, lembre-se que você é o líder !!!
- Pai, se eu ficar de olho nela não vou ter tempo de beber..

Dr. Fernando começou a perder a calma ..

- Você tá maluco, beber e dirigir não combina, no máximo 2 cervejas e mais nada !!!
- Paiiiiiiii sem cerveja não tem carnaval, Bebel é mais sabida que todos aqui......
- Fredericoooooo, prometi a sua tia que você tomaria conta de Bebel !!!!
- Ei garotaaa, pega leve, nada de agitação, tô de olho em você, ok, ouviu a recomendação de seu tio ??
- Fica fora dessa primÔÔÔ eu quero é curtir o carnaval...te preocupa com a tua cerveja !!!
 
Dr. Fernando entrou em desespero ..
 
- Olha só,  esse carro só sai se alguém se responsabilizar por essa garota de menor !!!
- Oieeee Tiôôôô, fica tranquilo eu tomo conta de mim mesma, já sou grandinha...
- Toma nada, tu só tem tamanho menina, você é uma adolescente !!
 
 O papo empacou e ficou nesse vai-e-vem interminável até que se iniciou uma manifestação de dentro do carro, partindo de Alexandre, depois eu mesmo gritei e depois um efeito dominó tomou conta de todos gerando um coro  de vozes desesperadas:
 
- AGENTE TOMA CONTA DE BEBEL !!!!  fica tranquilooo Dr.Fernandooooooooo !!! pé na tabua Carlinhossssss.....Vamos nessa galeraaaa, a cerveja tá esquentando !!!
 
Dr. Fernando, democrata, concordou com o compromisso da maioria e afastou-se do carro tranquilo por saber que sua sobrinha seria acompanhada de perto por pessoas tão responsáveis...(na verdade a turba estava endemoniada pelo vírus do carnaval e não tinha a mínima condição  de tomar conta de si mesmo  quanto mais de outro.....mas isso Dr. Fernando não sabia.....)
 
HRUMMM, HRUMMM, HRUMMM, o V8 chicoteou seus cavalos e a máquina partiu com Carlinhos no volante e de óculos escuro, estilo Waldike Soriano, Bebel ao seu lado, e Alexandre  tomando conta da porta do carona que não existia mais. Os demais estavam entricheirados nos buracos destinados aos restantes dos sócios e convidados: o banco de trás, mala e teto.    


Carlinhos ao volante preparando-se para chicotear o possante.
 
Instantes depois da partida descobrimos que Marcelo não estava; corremos até sua casa e nos deparamos como uma cena insólita: calmamente nosso amigo mastigava seu pão com manteiga básico tendo ao lado um café-com-leite ainda em fumaça. Ah !! conhecendo bem nosso amigo sabíamos que esse café seria um parto normal de quíntuplos; sem tempo para esperar, partimos sem ele, ficando acertado que nos encontraríamos em Olinda.   
Navegamos pela rua Canápolis, dobramos a esquerda pela estrada Velha de Água Fria, pegamos a esquerda (primeira infração: movimento proibido pelo DETRAN...) entrando na avenida norte e aí a canoa navegou nessa avenida por um bom tempo. Em seguida pegamos a Agamenon Magalhães, Carlinhos engatou a única marcha rápida que tinha e singramos em mar aberto com vento de popa em direção à embocadura das Virgens de Olinda.  



O carnaval de 1982 - O Dodge Dart: nas Virgens de Olinda.



No meio do caminho tivemos o primeiro contra-tempo. A máquina possante singrava os mares bravios lá pelas bandas do complexo Salgadinho e para um visualizador externo estava mais do que claro que o carro infligia todas as leis vigentes de trânsito: sem porta, vidros e malas, e o pior de tudo com gente pendurada no lado de fora (no teto do carro e mala), inclusive uma de menor, como era o caso da jovem carioca que seria tutelada por Carlinhos, conforme desejo de Dr. Fernando. Além disso a cerveja rolava solta dentro do barco, passando de mão-em-mão e de boca-em-boca.
Esse cenário de irregularidades, no século XXI,  seria digno do carro ser apreendido na hora, rebocado para o lixão e o motorista aloprado, responsável pelo bendito carro, perderia uma imensidão de pontinhos na sua carteira, mas em 1982 o papo era diferente; ainda existiam vestígios dos famosos "corsos" onde os motoristas saiam com seus carros enfeitados para brincar o carnaval de rua, por isso não existia tanto rigor na execução das infrações por parte do DETRAN. 
Pois bem, nesse caminho, um guarda cismou de parar o carro. Vimos o carro da polícia estacionado no acostamento e ao lado seu guardião estirando o braço ordenando que parássemos o Dodge no acostamento. Foi o que Carlinhos fez, arriando a âncora do navio e estacionando. O que o guarda viu já era justificativa para levar para o depósito o barco juntamente com seus marinheiros: Carlinhos, Izabel e Alexandre, no banco da frente ; no banco de trás, mala e teto mais uma cambada, eu, Marta, Petrônio, Paulinho, Andrea, o Gordo Pinica e a irmã, Ana Kátia e mais uma que até hoje não identificamos quem seria. 
A conversa do guarda com Carlinhos foi mais ou menos a seguinte: 

- Bom dia Jovens, os documentos por favor ?
- Pega os documentos aí Bebelllll ...
- Por que eu ? e eu sei lá onde tá esse negócio, primÔÔÔ ...!! Quer mais cerveja ???
- Deixa de brincadeira garota !!!!! , galera, cadê os documentos ??? ( o eco com a voz de Carlinhos repetiu-se dentro do carro por segundos.....)
- Serve meu tubinho de loló (brincadeirinha de Marta se referindo ao produto fabricado pelos seus amigos estudantes de Medicina..)
- O que foi que a senhorita falou ?!
- Nada não seu guarda, ela entendeu que o senhor tava pedindo água (falou Petrônio...)
- UMMMMM...vamos lá jovens  quero o documento do carro !!! . 
- Bora lá pessoal cadê o documento do carro ? (Carlinos já em sinal de desespero...)
- Por que você tá olhando para mim primÔÔÔÔ, num sei onde tá esse papel nãoooooo !!!!!
- Ai meu Deus do ceu , galera, pelo amor do nosso CARNAVAL cadê os documentos ???

De repente uma lucida voz surgiu lá de trás, no meio da turba em pânico:

- Alexandre pega os documentos, está no porta-luvas...(era Petrônio e sua pronta responsabilidade...) 

Alexandre abriu o que se dizia ser um porta-luvas e achou um embrulho amarelado com um símbolo do DETRAN, constatou  que era o motivo do pedido do guarda e passou para Bebel que repassou imediatamente, para o até então sóbrio motorista Carlinhos, um embrulho amarelado e cheirando a mofo que qualquer lixo decente rejeitaria na hora.
O coronel rodoviária (nesse momento já tínhamos promovido o simples guarda de trânsito...) recebeu o embrulho, abriu, analisou, depois foi conferir a placa traseira, olhou dentro do carro, fez a volta, analisou o teto, mala, fez uma vistoria geral. Não deu um único "piu", calado estava, calado ficou até o término da análise. Imaginávamos que iríamos receber a seguinte orientação: " desçam desse lixo, o carro está recolhido, a carteira de motorista apreendida e a jovem de menor recolhida ao juizado por estar dentro desse antro de perdição". O mais incrível é que o zeloso disciplinador das via públicas não fez nenhum comentário adicional a não ser a pequena frase: - ok, tudo certo, podem seguir em frente e bom carnaval. Antes de pronunciar a última frase de CAR-NA-VAL, Carlinhos já tinha arrancado receoso de qualquer recaída do coronel. 
Continuamos nosso trajeto. Atravessamos todo o complexo salgadinho, entramos na avenida Sigismundo Gonçalves (o trânsito ficou mais lento), continuamos até chegar ao Varadouro, viramos a direita e continuamos pela mesma avenida, depois navegamos na avenida Doutor Manoel de Barros lima e chegamos na praça do Carmo. Lá o trânsito parou completamente e a bateria da máquina também.
Segundo contratempo: já na curva entrando na avenida beira-mar quando a famosa bateria - a mesma que já tinha dado sinais de cansaço desde a preparação do carro - começou a gaguejar. Imediatamente foi acionado o veterinário de plantão Petrônio que após uma limpeza nos cabos de contato solicitou a ajuda dos aloprados passageiros do navio, para dar uma ajudinha e empurrá-lo até a bateria se dignificar a funcionar. Foi um corre-corre mas funcionou, colocamos o carro em movimento e continuamos a passos de tartaruga. 
Já estávamos em pleno carnaval de Olinda e consequentemente nas Virgens pois a maioria dos carros já eram destinados a assistir o desfile do famoso bloco. A cada parada longa do trânsito descíamos do carro, circulávamos pelo habitat e depois voltávamos para o carro. Num breve momento de despreocupação,  quando estávamos caminhando reconhecendo o ambiente, surge do nada e parte em disparada em direção a Alexandre, uma horrível virgem devidamente fantasiada com um vistoso vestido verde  (soubemos depois que estava a caminho do palco onde iria ocorrer a apresentação e eleição da mais bonita boneca do famoso bloco olindense), o agarra e tenta desesperadamente dar um afetuoso beijo (fato esse registrado em foto logo abaixo..). Alexandre, aos safanões, milagrosamente consegue se desvencilhar da figura, porém a convida para subir no carro e tomar parte do passeio até o ponto onde seria dado início ao desfile oficial do bloco. A jovem subiu no carro e alugou o espaço até o tempo que bem quis. Por motivos que a grande maioria já sabe, e que não nos cabe divulgar nesse momento, apelidamos a dama de verde de "Corrinho".



A virgem Corrinho atacando Alexandre.
 

No trânsito, na curva da avenida beira-mar de Olinda com Corrinho no topo do carro.
 
  
Atravessamos toda a avenida beira-mar com Corrinho no alto do carro, imponente e orgulhosa por desfilar num dos carros, ou melhor, no carro mais bonito desse carnaval. Na foto está bem claro sua irreverente figura bem no meio do teto, tendo Carlinhos ao lado, de pé, completamente possuído pelo espírito das Brahmas e Antarcticas, e já sem a mínima condição de dirigir. Petrônio já tinha assumido a posição.
Cruzamos toda a avenida beira-mar, hoje chamada de Marcos Freire, e no final entramos a esquerda e depois a esquerda novamente, chegando na avenida paralela a praia; estávamos agora na avenida Presidente Kennedy. Estacionamos o carro no acostamento e nos preparamos para a passagem das Virgens de Olinda.  



Estacionado a espera das Virgens de Olinda.


Enquanto aguardávamos as virgens passar.
   
Nesse ponto alguns desceram e foram reconhecer o ambiente. Outros ficaram no carro, também reconhecendo o ambiente do alto do barco; as cervejas já rolavam de mão em mão.
Nesse meio tempo visualizamos nos confins da avenida uma figura alta e magra perambulando despreocupadamente pela calçada, era ele mesmo: Marcelo finalmente tinha terminado seu café-da-manhã e devidamente guiado pelo seu fusca bege tinha chegado tranquilamente no foco das Virgens; rapidamente se integrou ao ambiente tomando posse do naco de cerveja que lhe cabia e do pedaço de espaço que o aguardava no topo do mundo, ou melhor, em cima do carro.
Exatamente nesse local, infelizmente, foi registrado por um fotógrafo "free-lance" uma cena constrangedora onde esse que vos fala foi obrigado a se abraçar com a virgem Corrinho, tendo Alexandre aos fundos satisfeito por mais um se tornar o astro numa foto com a dama de verde; é isso aí, são coisas do carnaval....   
As virgens passaram pela avenida durante um verdadeiro dilúvio, chovia litros e mais litros d'água na região, porém isso não impedia a farra que perdurou até o anoitecer.
A volta, por motivos óbvios, Carlinhos foi rebaixada a função de conduzido e Petrônio tornou-se o líder do volante e essas posições perduraram durante boa parte do carnaval.
Enfim, o teste tinha sido positivo: o barco navegou direitinho, sujeito a tempestade de verão e ao humor da bateria que cismou em não funcionar corretamente durante todo o percurso. Estava aprovado e preparado para a semana pré e os quatro dias de Momo. 





O dilúvio: eu, Paulinho e o Gordo Pinica no teto do carro, Marcelo e Alice em cima do motor.



As Virgens passando (Alexandre e Anibal na margem de baixo da foto...)


 
 

Fui obrigado a tirar essa foto....Alexandre, Paulinho e Ana Kátia por trás...
 









  
  
 
  

    
 

O carnaval de 1982 - O Dodge Dart: a semana pré-carnavalesca (estirado na grama e derrubando os mascarados)


 
Depois da farra das virgens de Olinda o barco estava completamente preparado para a semana pré-carnavalesca que batia as nossas portas. Durante esse semana pelo menos duas noites foram dignas de serem registradas para a posteridade: combinamos que alguns dias passaríamos pelas ladeiras de Olinda e outros na avenida Boa Viagem onde também já existia um interessante carnaval de rua; na verdade lá o carnaval de rua era um monte de carro, um atrás do outro, desfilando lentamente (no tempo dos nossos pais isso era chamado de corso...). Parecia ser uma excelente opção, tinha exatamente o perfil glamoroso que se encaixava nas nossas pretensões: desfilar orgulhosamente, ao longo da cidade,  o possante carro perante a turba maravilhada.. 
Então os mesmos componentes das estripulias das virgens estavam a postos para mais esse desafio, munidos de cervejas e batidas de Vodka que rolavam em todos os compartimentos do carro, inclusive o do motorista.
Na quarta à noite partimos para Olinda com o mesmo grupo de pessoas. Paramos o carro na avenida Liberdade, na praça do Carmo, exatamente defronte da atual faculdade FOCCA. Esse era o nosso ponto de apoio. Daí partiram para explorar as ladeiras da bela cidade, alguns como Marta e sua loló, e também  Alice e Paulinho. Os demais ficaram inicialmente no carro numa farra etílica.
Lembrando as recomendações de Dr. Fernando, Carlinhos chamou Izabel e solenemente iniciou suas inúteis recomendações:
 
- se liga garota, nada de  agito e farra, tu é de menor !!!
- sai dessa primôôô, cuida da tua vida e da tua cerveja q cuido da minha, isso aqui é muito bom, vou para a farra !!!
- se sair da linha coloco vc no trilho de novo.
- tchauuu, já sai da linha a muito tempo, o trem descarrilhou, não tem trilho nenhum por aqui, tô indo pular nas ladeiras e ninguém me segura....uauauauakkkkkkkk
- Bebellllll, volte aqui meninaaaaaaa ... (não houve reposta, Bebel já tinha cruzado a primeira ladeira atrás do bloco que passava...)
- Carlinhos deixa de frescura e vem aqui virar esse tubo de vodka  (gritou uma voz feminina perdida em cima do carro, era Martinha....) ...
 
O mundo alumiou, a noite tornou-se mais bela e Carlinhos partiu atrás da voz do além que o convidava ao delito alcóolico. Enfim, aconteceu o que prevíamos: jamais iria tomar conta da sua prima, a bebida seria sua prioridade. 
A noite passou sem mais anormalidades e lá na alta madrugada a turma pegou o beco para casa.. O carro partiu e no meio do caminho, numa área desolada perto dos Bultrins, fraquejou, tremeu de um lado, balançou de outro, arriou o seu lado direito e aí percebeu-se que o pneu já era, furou, exatamente num local deserto apropriado apenas para esconderijo de meliantes.
O barco parou,  Carlinhos desceu, cambaleou completamente alcoolizado e praticamente desmaiou  num resto de gramado ao lado da calçada, ficou estatalado no meio das pedras, urtigas e cactos. Alexandre e Marcelo, os únicos representantes do sexo masculino (os demais tinham voltado para casa antes disso...) desceram rapidamente, não para socorrer o motorista desmaiado, mas para tentar efetuar a troca de pneu, tarefa essa que se prenunciava impossível em virtude das forças escassas dos dois, decorrentes de horas de farra pelas ladeira de Olinda. As meninas (Marta, Alice, Andrea, Izabel, Cristina, Ana Kátia e mais algumas que não lembramos mais...) continuaram na maior tranquilidade completamente alienadas em relação a situação desesperadora.
Vendo seu primo estirado e inerte , Bebel gritou:
 
- ei primÔÔÔ acorda para cair de novo !!! kkkk
- vem tomar conta de mim, sou de menor !!! kkkk
- pessoal, bota um tubo de quick com vodka na goela dele que ele acorda !!! kkkk
 
A algazarra tomou conta do carro. Nesse meio tempo apareceu do nada um caminhão enorme, diminuiu a velocidade, viu o desespero e parou uns metros adiante. Desceu da boleia três negões estilo NBA (baskete americano...), dobrados, gigantes, e se dirigiram ao centro das atenções, o carro avariado, e perguntaram às belas meninas com voz retumbante em coro:
 
- E AÍ MENINAS, PRECISAM DE AJUDA, ESTAMOS AQUI PARA O QUE DER E VIER ???  
 
Alexandre e Marcelo gelaram, tremeram, empalideceram, imaginando já  a terrível notícia no Bandeira 2:
 
"ATENÇÃO, ATENÇÃO, ATENÇÃO....LINDAS MENINAS SEDUZIDAS A FORÇA NOS BULTRINS POR TRÊS NEGÕES  DESCONHECIDOS.  OS DOIS AMIGOS, QUE AINDA ESTAVAM SÓBRIOS, TENTARAM REAGIR E FORAM SEDUZIDOS TAMBÉM.  O OUTRO, COMPLETAMENTE EMBRIAGADO, QUE DORMIA ESTIRADO NO MEIO DO MATO, FOI SEDUZIDO VIOLENTAMENTE SEM ESBOÇAR QUALQUER REAÇÃO".

As meninas continuaram tranquilas e brincando e não tinham a mínima ideia do perigo que corriam. Dessa vez foi Marta que gritou se dirigindo dessa vez aos NBAs:

- E aiiiii parceiros, dá um cheiro no cangote do galego que ele acorda .. kkkkk
- Se num resolver troca o estepe dele.....uauauaukkkkk
- Se ainda não acordar bota esse tubo de loló nas ventas dele q ele levanta na hora .... kkkkk

Por incrível que pareça os Afro-descendentes foram muito educados, desconsideraram a piadinha da jovem aloprada e trocaram rapidamente o pneu do carro.
A volta do carro foi feita tranquilamente com Petrônio, que milagrosamente apareceu do nada, dirigindo na mais completa paz o carrão enquanto o motorista aposentado Carlinhos jazia inerte no banco de trás.


Na quinta-feira à noite fomos para a avenida Boa viagem conhecer o carnaval da zona sul. A informação que tínhamos era que o carnaval por lá baseava-se apenas em desfilar com o carro na avenida (o velho "corso"....), então partimos nessa direção com todos os integrantes do barco a postos com suas respectivas cervejas e vodkas. No meio do caminho pegamos alguns passageiros, Alice na avenida Norte,  Alexandre e Andréa no Pina, atravessamos a Conselheiro Aguiar e nas imediações do Castelinho entramos na beira-mar. O trânsito parou, estava tudo engarrafado, era carro para se perder de vista. O barco navegava em marcha lenta, sem vento de popa e de proa. A turba dominada pela cerveja se divertia alegremente, em cima, dentro e também nas vizinhanças do possante automóvel.
Em dado momento Carlinhos não aguentando mais o regime de dirigir sem se divertir largou a direção e me pediu para continuar guiando a passos de tartaruga. Pela primeira vez assumi brevemente o volante visto que nesse dia Petrônio não estava. 
Na nossa frente ia uma caminhonete com um monte de gente em cima, todos mascarados, entornando garrafas e mais garrafas de Rum Montila. Passamos um bom tempo nesse ritmo: nosso carro perambulava lentamente com sócios e convidados entornando suas cervejas e batida de Vodka e o carro da frente no mesmo ritmo no mau gosto da bebida cubana.
No banco da frente lá ia eu de motorista temporário; depois de um tempo de castigo enquanto os demais se divertiam decidi pedir a aposentadoria da função; porém, não deu tempo para isso, de repente percebi um vulto de mulher pulando no banco da frente, cantando em êxtase contaminada pelo frevo nordestino, num alvoroço sem igual: era Bebel. Não sei bem o que aconteceu  mas a partir daí o que me lembro foi uma "crônica de uma morte anunciada". Numa fração de segundos o carro, seguindo um impulso desconhecido, projetou-se para frente numa velocidade um pouco maior que o habitual, além do ritmo da caminhonete, o que ocasionou um leve esbarrão nesse veiculo, gerando assim um leve tremor no carro da frente; pelo que me consta apenas um dos mascarados deu uma leve balançada e se esparramou no caçamba, os demais se equilibraram com tranquilidade. Enfim, o esbarrão foi breve, simples e sem maiores consequências porém a turma do Montila fez um carnaval em cima do carnaval. Foi o maior drama: simularam quedas, arranhões e outros martírios sem precedentes. Vi alguns já com garrafas em punho com a intensão de nos revidar uma provocação inexistente. Com certeza tudo isso era ativado pelo álcool que deixava os mais nervosos e exaltados , valentes. 
Rolou um breve bate-boca dos dois lados, ameaça daqui, ameaças de lá ; estávamos em desvantagens pois percebemos uma grande quantidade de mascarados com físicos bem mais privilegiados do que os nossos mirrados músculos; além disso nossa diminuta coragem em assumir qualquer conflito nos colocava em inferioridade completa.
Aos poucos surgiu a turma do "deixa disso", os ânimos foram se acalmando e em questões de poucos minutos tudo voltava ao normal. Os mascarados foram curtir seu Rum e nós as cervejas e vodkas. 
O futuro advogado Carlinhos já exercendo seus dotes técnicos, simulando um breve interrogatório, iniciou uma interminável listas de perguntas descabidas:

- Duuuuuuuuu, que POR¨%$A foi essa, vc tá maluco , tututu batetetesse no carro da fente...?? (leve tremedeira - não de medo - mas decorrente do porre etílico....)
- Foi nada não CarlinÔÔ, fica tranquilo que o carro nem andou foi o outro que deu ré..kkkk , disse Bebel.
- Cala boca menina, fica na tua, não te mete não que eu quero é saber o que houve. Eu vi nosso carro batendo no carro dos mascarados ....
- Sei não Carlimhos, acho que meu pé gerou um reflexo incondicionado, provocando espasmos musculares que pressionaram o acelerador involuntariamente .. - falei
- É Isso aí DuÔÔ, foi isso mesmo...tá vendo CarlinhÔOOOOOO o nosso carro bateu sozinho. Nós num tem culpa não !!! cai fora e vai tomar tuas cachaças para lá.........kkkkk
- Eu quero saber o que aconteceu, o carro bateu exatamente quando você pulou no banco da frente !!!!  teu carnaval vai acabar hoje mesmo se tu não se ajeitar ok garota ??
- Se o meu acabar o teu acaba rapidin também primoÔÔÔ, Tio Fernando vai saber q tu tá de porre no volante, bebum..bebum ; digo também que cê ontem desmaiou na grama, que nem uma jaca,  e deixou os negões me agarrar....kkkk

A conversa entrou em loop num vai-e-vem sem fim, um duelo entre Carlinhos e Izabel até que uma alma caridosa nos chamou lá de cima ; subimos no palco, que era o teto do carro, deixando repentinamente Carlinhos de volta a sua função original: motorista embriagado.
A noite continuou sem maiores problemas e quando a madrugada adormeceu partimos de volta para o lar. 
 
A Semana pré terminou na sexta à noite em grande estilo; uma noite de gala. Em 1982 ainda existia a tradição de curtir as noites de carnaval em clubes que era ainda, na época, um evento tradicional e muito animado;  portanto, a primeira e única festa chique que participamos junto com o Dodge foi uma bendita prévia no Clube Português nessa sexta-feira. O mesmo grupo que foi às virgens e que curtiram as estripulias dos dois últimos dias, exceto um ou outro que se dispersou inexplicavelmente, preparou-se para o baile procurando as fantasias mais adequadas para o evento.
Com a exceção de Alexandre, que decidiu por um distinto Almirante, todos os demais cavalheiros partiram para fantasias de piratas e as jovens garotas de ciganas. Almirante, piratas e ciganas registraram a foto para posteridade. A noite transcorreu normalmente, com exceção de Carlinhos que virou todas as cervejas do clube imaginando-se um perfeito pirata "Barba-Negra"em pleno bacanal.
Enfim, fomos apresentados a semana pré e consequentemente plenamente preparados para o carnaval de verdade...     
 
 
Dentro do Clube Português.
  







O carnaval de 1982 - O Dodge Dart: semana de carnaval (sábado).



Após as estripulias nas virgens e na semana pré chegou a vez do carnaval. Todos os dias, de sábado a terça, o carro navegou nas ladeiras de Olinda, tendo como ponto de apoio, como sempre, a praça do Carmo.
Juntaram-se a trupe de aloprados mais alguns colegas: da avenida norte veio Alexandre, amigo de Alice de faculdade, de Casa Forte chegou Rosana amiga de Marta, e de Olinda estava presente aquele mesmo das incríveis aventuras do Pina, o camarada Anibal.
No sábado Carlinhos comprou uma peruca horrível, completamente descabelada e sem cor definida; com essa indumentária, além do óculos escuro e a camiseta laranja, seria convidado rapidamente a se hospedar num quarto VIP da casa de repouso  "Anibal Bruno". Por outro lado, Alexandre arrumou, não sabemos de onde, um enorme e amedrontador charuto estilo cubano que serviria de encenação durante todo o carnaval, como descreveremos mais tarde.
Já no primeiro dia, na primeira manhã, na primeira hora, Carlinhos tinha detonada várias e várias cervejas por isso no meio da tarde perambulava completamente desnorteado, perdido no espaço e no tempo. O carro estava no mesmo local, alguns brincavam em cima acompanhando os vários blocos que passavam, outros estavam dispersos pelos quatro cantos das ladeiras a procura de algum bloco.  


Carlinhos e sua e peruca aloprada já possuído pelas cervejas.


Avenida principal da praça do Carmo : foto tirada de cima do carro.

Carlinhos, perdido pelo álcool, se arrastou durante horas por  becos, vielas, travessas, subindo e descendo aleatoriamente as íngremes ruas da cidade alta. 
Em paralelo Martinha seguia o mesmo caminho atravessando na ordem inversa travessas, vielas e becos, também entorpecida pelo álcool, parando e seguindo cada bloco que passava, qualquer um, de grande a pequeno, de mundiça a gente fina, bastava ter uma bandinha e tocasse frevo e lá estava ela seguindo o passo do frevo.
Por uma incrível sorte, ou talvez destino, os dois terminaram se encontrando num local não identificado e a conversa que se seguiu será guardada para sempre como um dos papos mais psicodélicos e alternativos da época:
 
- Martinhaaaaaa, acheii você irmãzinha, está curtindo o frevo ?
- Olá brother, tÔ aqui né !!!
- Fazendo o que maninha ?
- Sentada, tu num ta vendo, ficou lelé !!
- Sim maninha, mas tu tá SENTADA fazendo o que ?!!!
- Ai meu deus !! tô sentada por que não tÔ em pé...
- Iche Maria !! deixa de onda maninha, o que é isso que tá na tua mão ?
- Um copo ...
- Num é isso que quero saber, POR*&A, o que ce tem dentro do copo ?
- Vodka !!
- Mas tá com cor de laranjada..
- Botei suco..
- Oba gosto de suco de laranja, é da laranja mesmo ?!!
- claro que não mané, é de saquinho !
- Tang ou Quick ?
- QUICK, QUICK, QUICK !!
- OBA !!! é desse que eu gosto, passa para cá um pouquinho Martinha...
- Experimenta, vê se esquenta tua guela..
- ummmm, arrrrrrrr, ta gostoso mesmo, manda vê mais ..
- Vai com calma brother, tu tá bebum, isso aqui pega fácil..
- Fica fria maninha, tÔ acostumado, sei cuidar de mim mesmo...
- Eu sei. vi você na quinta-feira estirado no meio do mato enquanto os negões taravam agente...kkkk 
- Deixa de brincadeira e passa mais uma dose.
- Segura essa dose mano, caprichei....uauauauauaua
- Marltinhaaaaaa, ilso é bão demais .. (voz embolada pelo álcool)... 
- Ei Martinha, onde tu tá guardando tanta bebida ??
- Aqui no meu cantil, tá cheinho, olha só, legal né ??
- Cantil !! onde comprasse isso ?
- Num camelô em Casa Amarela..
- Oba, é só para gente né ??
- Agora é, mas enquanto eu caminhava perdida pelas ladeiras emprestei uns goles pruns amigos..
- Emprestar, gole, que amigos ?
- Os maninhos que encontrava nos blocos por aí...
- Que maninhos, conhecidos seus ?
- Sim, conhecidos, conhecia nos blocos e ficavam amigos meus...
- Ai meu Deusssss, ARGGGGGG, quer dizer que nem sabe quem botou a boca nesse cantil .. ???!! - tu tás lascada, vai pegar doença na boca e eu também, nossa senhoraaaaa !!! vou perder meu carnaval ..
- Fica peixe companheiro, meus amigos quase médicos (colegas do marista que cursavam o segundo ano de Medicina...) disseram que o álcool mata os vermes e as bactérias... olha para minha boca tá vendo alguma coisa errada ? TÔ limpa brother....PAZ e AMOR !!!
 - Ah bommmm...
- Que buraco é esse na tua camisa maninha, alguém bateu em tu, DIGAAA LÁ QUEM FOI QUE VOU DAR UMA PORR¨%$DA NESSE ESC&¨%TO......
- Calma lá brother, deixa de brabeza, tu vai bater em ninguém, num consegue nem ficar de pé....
- EU DOUU PORRADAAA..
- VAI DÁ NADA, pega esse cheirinho aqui para relaxar...
- Que É isso, lança-perfume ? ummmm que gostoso ...tu és toda esquematizada menina !!
- Não companheiro, isso é a loló que meus amigos quase médicos fizeram !!
- Os mesmos do "álcool que mata vermes e bactérias" ?
- Sim, eles são brothers, sabem mesmo das coisas, estão curtindo uma tal de sociedade alternativa..
- Manda mais maninha...ummmmmmmm tá tudo girando.....
- E o buraco na tua blusa o que foi isso mesmo ?
- Foi esse cheirinho que tu tá gostando, queimou o tecido e a pele...
- Aiiiiii minha santinha de casa amarelaaaaaaaaa !!!!!! PUT$%$# MER%$, isso vai queimar meu narizinhoooo...vamos sair daqui sua doidaaaaaa, sinaum agente cai duro aqui  no chão; vamos simbora pro carro que tenho que tomar conta da minha prima !!!
- Tu não vai tomar conta de Bebel hora nenhuma, a garota tá pulando pelos mesmos becos e vielas que passei..
- Aiiiii meu pai vai me matar !!!!!
- Vamos lá galego, tÔ cansada mesmo daqui, vamos caminhando e tomando quick com loló ...isso aqui tá bão demais : "hoje eu sé quero alegria, é meu dia, é meu dia, hoje eu só quero amor, hoje eu só quero prazer, hoje vai ter que pintar, eu só quero a massa real, é o meu carnaval..."
 
Os dois chegaram só Deus sabe como na praça do Carmo e por tabela ao carro ..... a noite caminhou com mais cervejas e QUICK sem mais nada a se declarar.....   
 
 
  
Estacionados na praça do Carmo tendo Martinha na frente poucos minutos antes de
 se debandar pelas ladeiras.
 
Alice, Paulinho, Bebel e Alexandre (amigo de Alice) no
provavel momento que Carlinhos e Martinha travavam sua
conversa amalucada. 
 



O carnaval de 1982 - O Dodge Dart: semana de carnaval (domingo)



O domingo de carnaval rolou na maior alegria. Carlinhos embriagado desde o momento que pisou na praça do Carmo; Martinha perdida pelas ladeiras e becos, Bebel se desvencilhando do inútil policiamento do motorista ébrio e por aí a festa caminhava sem maiores estripulias.
No final da tarde, Carlinhos se arrastava ao lado de Alexandre pela praça do Carmo. Seu companheiro, aclamado em 1980 como o rei do pina - não devido a seu sangue azul ou qualquer coisa semelhante, mas sim por ser considerado o maior bebedor de cerveja do dito bairro -  estava  sóbrio, apesar dos litros e mais litros consumidos da referida bebida. Os dois perambulavam sem destino; Carlinhos com a horrível peruca loura e com óculos escuros e Alexandre de posse de um charuto com um cheiro pior do que essência de gambar.
Foram caminhando, caminhando, bebendo, bebendo, e o charuto na mão de Alexandre e às vezes no bico, simulando umas tragadas;  os dois perceberam que todos que passavam ficavam de olho na dupla, principalmente no maldito charuto, e aí tiveram uma brilhante ideia:

- Carlinhos, vamos tirar uma onda com esses manés de Olinda ?
- que onda é essa véio, esse carnaval já é uma onda mesmo então tá bão assim; vamos encher a lata de cerveja !!!
- vamos tirar onda com esse charutão .....
- tu quer beber ele, tá doidão é parceiro ?
- ce tá maluco galego, só pensa em beber...né isso não ... vamos dizer que esse charutão deixa a pessoa doidona, sobe nas nuvens, vê estrela brilhando no quengo, assim como a maconha, e enrolar esse bando de trouxa ..
- nossaaa !! tu é doido cara .. já não basta a maluca da Martinha me fazer beber uma batida de quick do cantil que os malocas botaram a boca e ainda me fazer cheirar uma lóló que queima a PUT$# Q&¨% PAR*&% e agora vem você com essa maluquice...
- vamos lá, vamos lá, vamos lá galegooooo... 
- não não não....
- vamos vamos vamos ...
- kkkkkk , okkkkk, vamos lá tirar onda com esses debiloides malocas de rua ....

Os dois caminharam por um bom tempo soltando fumaça pelos quatro cantos da rua, simulando a loucura da marijuana colombiana até chegar na frente da casa que na época era a sede do bloco "Eu Acho é Pouco". Bem no meio da rua aumentaram o fumaceiro e começaram a simular danças tribais, rodopiando e falando embolado, em voz alta, da eficácia dos efeitos alucinógenos do maldito catinguento cubano.



Sede do "Acho é Pouco".
Aos poucos foi juntando gente e mais gente até que formou uma roda de bobo na rua com os nossos amigos no meio como astros tresloucados:

- PUT&%$ MER%$A companheiro, esse negócio é MUITO BÃO...tô nas nuvensssss (berrava Alexandre de um lado..)
- Me dá um pouquinho, me dá um pouquinho parceiro .... deixa eu ir no ceu, fumar uma lá, e voltar (Carlinhos berrava de outro lado....)
- Nossa tô vendo estrela Alexandreeeeee, isso é melhor do que loló com quickKKKKKK ...tô doidão ....
- pera ai Carlinhos, deixa eu dar uma tragada maior. ummmmmm...ahhhhhhhhhhh...isso é melhor do que namorar dentro do carro no aeroclube......
- passa para cá, vai, manda vê, num esquece de mim que eu quero é mais fumaçaaa..
- pera aí, pera ai, deixa eu ver o saçi-pererê e a mula-sem-cabeça que te dou o restinho.....uauauau...tô vendo, tÔ vendo... pega o restinho agora !!
- Ahhhhh, ummmmmm , se Martinha vê isso ... ela iria ficar doidona também ...tÔ vendo centopeia, caranguejos e lagartos.. tá tudo subindo pelas minhas pernas tÔ doidãooooo.....finalizou Carlinhos revirando os olhos..

Enquanto a conversa entrava num loop amalucado dois maloqueiros entraram na roda e sem saber da encenação cairam no conto:

- Oia pareia os dois taum fumando um bago de maconhaaaaaa...vamos nessa, vamos nessa..
- é mesmoooo, oia os olhos do gordinho, oia os olhos do gordinhoooo, tá vermelho que nem fogo em brasa ...
- esse cabra tá cheio do pó mano, olha também o galegão, os oios dele taum virando...ele tá possuidooo pelo demooooo...
- minha nossaaa, os dois estaum encapetados ....
- vamos filar o bago desses capetasss.....

Alexandre e Carlinhos percebendo os dois abestalhados na roda, iniciaram a etapa final do conto:  

- que é q vocês querem bestoides ???!!!
- ei gordinho dá p mim um pouquinho, vai gordinho..vai.., deixa eu provar esse bago !!!
- ei camarada, tu é moleque de rua ainda, se a polícia pegar vai ver o sol quadrado, xilindró, dá não, dá não...fica na tua.....(alexandre replicou...)
- ei calango do sertão tu não tá acostumado com isso, tu é de menor, fica longe dessa, xÔÔÔ...(Carlinhos ratificando Alexandre..)
- Vai, vai, vai, nóis quer curtir essa fumaça doidona...
- tá bommmm, pega ai cabra da peste, mas dá uma fungada de leve por que a coisa é pesada mesmo...
- deixa eu ver: ummmmmmmmmmmm.....arrrrrrrrrrrrrrrrr....... to ficando doido do cacete ..o charuto do gordinho é arretado; tá tudo rodannndooooooo.....vou cair no chãoooo....
- me dá, me dá, eu também queroooo. ummmmmmmmmmmm arrrrrrrrrr.....aiiiii rodou tudo, tô cheio de maconha, isso é melhor que cana cearense de cabeça....
- vaaaaaamos devolve o bago zé pilintra que isso né coisa para tua laia não !!! - Alexandre berrou..
- pelra um pôquinho goldinho, deixa meus oios filcar saindo faisca que nem o teuuu....
- obaaaaaa tÔ possuído pelo chifrudo...aiiiiiiiiiiii......meus oios taum virando que nem o do galegão......

Quando o segundo maloqueiro foi provar a inocente fumaça, foi interrompido bruscamente por  Alexandre que arrancou a força o charutão receoso que seu precioso objeto fosse furtado na confusão, arrastou Carlinhos do meio do aglomerado de vadios que crescia a cada minuto e partiu de volta para o ponto de apoio: o carro.
Voltaram trôpegos atravessando becos, ruelas e vielas, caminhando, conversando e soltando fumaça pelos quatro cantos de Olinda. No carro a noite continuou tranquila, entre cervejas, vodkas e fumaças do inofensivo charuto...
 
       

Alexandre, com Alice, ainda sóbrio antes da aventura do charuto.
 
 


























 

O carnaval de 1982 - O Dodge Dart: semana de carnaval (terça-feira, fim-de-festa)

 

Na terça-feira, último dia de carnaval, as estripulias repetiram-se sem mais qualquer novidade, Marta e Bebel, perdidas pelas ruelas da cidade alta, de vez enquanto apareciam no carro para descansar; Alice, Paulinho, incansáveis, continuavam  atrás dos blocos, e os demais no carro navegando nas cervejas ou tirando onda pelos becos e buracos de ruas .
No final da noite o carro foi retirado, com muita dificuldade, do local onde estava estacionado: precisou ser empurrado pois a bateria não pegava. Para empurrar foi um sacrifício, além das forças escassas de cada um, uma chuva torrencial, misturada com areia e detritos do carnaval, enlameava toda a rua dificultando a ação.    
Já era alta madrugada quando o carro levantou âncoras da praça do Carmo, sob a tutela de Petrônio. Voltamos pela beira-mar, imbicamos pela av. Presidente Kennedy e caminhamos mais uns 2 km até dobrar a esquerda, seguindo reto até chegar ao nosso destino final: a avenida dos Bultrins. Na época esse era o único caminho de volta para Recife e era sofrível, visto que como única porta de saída o engarrafamento era monstruoso.
A chuva era forte e o frio chegou de vez principalmente para quem estava no lado de fora do carro. Dependendo do humor da chuva, saíamos e ficávamos no teto e mala e quando a chuva voltava forte entrávamos no carro. 
Petrônio já tinha assumido como piloto oficial desde o primeiro dia de carnaval quando percebemos que Carliunhos entornava todas as cervejas e ficava sem a mínima condição de voltar guiando a máquina. Nosso Petrõnio tinha o perfil ideal: além de não beber, dirigia bem e conhecia razoavelmente  bem motor, bateria e similares.
A chuva continuava firme quando chegamos nos Bultrins, e o engarrafamento também. Nesse momento foi que descobrimos que a triste ideia de tirar os vidros do carro, principalmente os da frente, foi de uma infelicidade sem igual. Sem esses, além de não melhorar coisa nenhuma a velocidade do carro, como foi previsto por alguém que não lembramos mais nesse momento, piorava mais a situação em momentos de chuva. Nessa situação o vidro que poderia aparar a água, o vento e o frio, dava lugar ao espaço vazio onde essas inteperies da natureza entravam sem piedade no interior do barco. 
Petrõnio navegava com cuidado com o leme bem seguro; o vento frio e a chuva nos acompanhavam; era terrível e a escapatória era berrar, beber, cantar, e amaldiçoar o criador de ideia tão descabida.
A situação de serenidade de Petrônio mudou na primeira parada de congestionamento nos Bultrins. Quando paramos, ele largou o volante, saiu do carro, e deu sem mais nem menos um pinote por cima do capô: parecia possuído pela mesma entidade que tomou posse dos corpos dos maloqueiros no caso do charuto de Alexandre e Carlinhos. Após os pinotes, entrou no carro, ajustou seu óculos escuro, tomou posição no volante e deu prosseguimento a via cruzes em marcha lenta devido ao engarrafamento. O barco pegou uma área mais livre e o motorista enfiou o pé no acelerador, aí sim o frio foi de corta as orelhas, berros e impropérios foram ecoados de dentro da lata velha:

- Petrônio, PUT%$ Q%$ PAR%$ navega mais devagar esse troçoooo, que vento da POR$%$# !!! o frio tá lascando as nossas ventasssss.......gritava Carlinhos rapidamente recuperado da sua cachaça.
- Cala boca primÔOO, tá legal assim, barato total ....... bota gas nessa barca PetrônioÔOO - gritava Bebel em extase..
- Fica quieta Bebel senão seu carnaval vai acabar agora mesmo, lembre-se que tô tomando conta de vocêêê, falava Carlinhos completamente perdido no tempo.
- Te liga primôoo, o carnaval já acabou e nem tomasse conta de tu, quanto mais de mim, fiz a farra e cê  nem viuuu. Ai, Ai,Ai,Ai,Ai,Ai, vou contar para Tio fernandooooÔÔ ..kkkkkkkkkkuauauauaua ...
- Galeraaaaaaa aqui tem loló e vodka com quick, vamos mandar ver para esquecer o frio...Martinha se esguelava de algum lugar de dentro do barco..... 
- Obaaaa !!!!! a vodka do cantil que corta boca e a loló que rasga roupa !!!!! -  ecoava o coro de malucos em êxtase...
- quem quer um charutinhoooooo cubano....???!!!! kkkkkk - berrava Alexandre perdido na multidão... 


Era uma casa de terror ambulante ; a única forma de relaxar e esquecer o frio era usar a proteção dos corpos, além, é claro, da bebida. Era uma amontoado sem igual de gente: eu, Petrônio, Marta, Bebel, Alice, Alexandre, Carlinhos, Paulinho, Marcelo, Alexandre (amigo de Alice), gordo pinica e mais alguns que nesse momento do tempo não temos mais como recordar, enfiados e embolados dentro do velho Dodge usando esse corpo-a-corpo como cobertor e casacos de peles naturais.
Entramos em novo engarrafamento e o carro parou novamente. Petrônio dessa vez, não pinotou sob o capô mas pior, deu um flecheiro em direção a rua repleta de carros engarrafados e lascou várias cambalhotas no meio do asfalto, enquanto a galera berrava e assistia em delírio o espetáculo aloprado; após a apresentação voltou rapidamente para dentro do carro. Era impressionante: de repente ele se transformava, fazia suas acrobacias na rua e depois voltava calmamente ao volante e prosseguia sua função de guia oficial na mais completa paz e serenidade...
O carro voltou a caminhar por um trecho mais rápido. Novas gritarias partiam de dentro do navio. De repente alguém começou a cantar a velha marchinha de carnaval, a famosa "marcha do remador",  remodificando levemente a letra adequando assim a situação atual do barco:

- SE ESSA PORRA NÃO VIRAR EU CHEGO LÁ, OLÊ..OLÊ..OU LÁ  .. EU CHEGO LÁ ... 

E o refrão virou hit do momento e a marcha continuou sob esse ritmo.

Mais para frente alguém gritou:

- Cala boca PESSOALLLL senão vai acordar Petrônio !!

Foi uma frase que ecoou até os dias de hoje.  Ninguém tinha observado o perigo que estávamos passando: Petrônio estava de óculos escuro, chovia, ventava, a iluminação do carro não era adequada e a da avenida menos ainda, e para completar não tínhamos vidro de proteção; o vento soprava na cara. Nosso amigo estava calado, mudo, mexia apenas alguns dedos das mãos, ajustando levemente o leme, talvez por reflexo condicionado. Ele poderia estar dormindo mesmo. Foi aí que a gritaria aumentou oe  refrão foi acrescentado em mais  algumas linhas:

- SE ESSA PORRA NÃO VIRAR OLÊ OLÊ OU LÁ ..EU CHEGO LÁ
- Cala boca senão Petrônio ACORDA !!
- SE ESSA PORRA NÃO VIRAR OLÊ OLÊ OU LÁ .. EU CHEGO LÁ 
- Cala boca senão Petrônio ACORDA !!

O trânsito aliviou então o motorista empurrou o pé e a barca seguiu em boa velocidade ao som do refrão, enquanto chovia prego por todos os lados. As luzes dos postes que iluminavam de tempo-em-tempo o interior do veiculo aloprado, juntamente com os berros, músicas e cervejas voadoras, provocavam um efeito alucinante e psicodélico, um trem-fantasma-ambulante: lembrava a situação que passamos, eu e Alexandre, em 1978, no carro maluco de Dorinho, que nos conduziu do Pina a Candeias em 10 minutos..... 
O comandante seguia firme de óculos escuro, impassível e orgulhoso pela sua responsabilidade em conduzir um bando de aloprados.
Cruzamos toda a Agamenon Magalhães assim, no ritmo que Deus no permitiu cantando a marchinha de carnaval reinventada, passamos pela Avenida Norte, deixamos Alice e seu amigo Alexandre e seguimos em frente até chegarmos no porto final: a rua Canápolis. Estacionamos no quintal de Marcelo.
Fim de carnaval ; fim-de-festa. O carro, ou melhor o que existia ainda de carro estava completamente indirigível. Seria uma perda de tempo manter esse carro por mais um ano esperando o próximo carnaval. Procuramos o primeiro ferro-velho que apareceu e vendemos a barca pelo primeiro preço que foi dado; o resultado da venda nos permitiu ir na rua da Concórdia e comprar alguns instrumentos musicais: um reco-reco, tamborim, pandeiro, e um pequeno bumbo.
A posse desses instrumentos nos permitiu sermos convidados para algumas festas (uma delas foi na casa de um dos amigo médico de Martinha, aquele mesmos da loló....) imaginando os anfitriões que a equipe de músicos tinha algum dom musical o que se comprovou mais tarde ser uma aposta completamente fora de propósito, pois de música a maioria só entendia da "marchinha do remador".

No sábado pós quarta-feira de cinzas nos reunimos pela última vez na casa de praia de Dr.Tenório e
Dona Mariinha, pais de Marcelo e Paulinho, que nos presenteou com um almoço em comemoração celebrando o fim-do-carnaval. Isso ficou registrado nas fotos a seguir onde pode se ver os atores e atrizes principais em plena evolução musical: eu, Alexandre, Carlinhos, Marcelo, Petrônio, Bebel e Martinha, cada um com seu instrumento resultante da venda do carro, simulando uma orquestra desincronizada.

Essa foi a última vez que esse grupo se reuniu para um evento carnavalesco ou semelhante. Nos dois anos seguintes ainda fizemos bons carnavais, com novos carros incrementados e pintados da mesma forma, um Galaxie e depois um Dodge, mas jamais seria como o famoso carnaval de 1982. Tudo contribuiu para o sucesso desse primeiro carro: a inovação de um carro todo pintado foi fundamental, mas o mais importante é que no grupo eram todos grandes amigos apenas se divertindo, não existia namorados, casados ou qualquer compromisso semelhante: cada uma fazia o que bem entendia da sua vida e do carnaval, respeitando é claro, um tênue limite de ordem e moral.

A ideia de escrever esse contos foi manter sempre viva as imagens de uma época sem igual que ainda teima em não desaparecer na nossa imaginação. Nunca vou esquecer quando em um belo dia, numa festa de aniversário,  Dona Mariinha falou uma frase a respeito disso tudo que reflete muito bem o que passamos: "Nós eramos felizes e não sabíamos". A felicidade que ela falava era a liberdade, o descompromisso de grandes amigos, solteiros e preocupados apenas em se divertir.  
O tempo passou, crescemos, seguimos o caminho adiante pela vida, casamos, alguns se separaram, tivemos filhos - já tem até gente que passou a ser chamado de avô, enfim, agora também somos  felizes e já sabemos ..... 

 
A banda aloprada no almoço na casa dos pais de Marcelo.




No almoço






Na casa de Marcelo tomando conta de Bebel.