quinta-feira, 28 de julho de 2016

As Estranhas no Ninho




Introdução.


  Os deuses do Candomblé, os Orixás, trabalharam bastante para acudir as quatro amigas baianas no fatídico dia em que seu professor de "Psicologia do Consumidor", do Curso de Comunicação Social, teve a infeliz ideia de sortear para um trabalho, que seria a última nota da disciplina, uma lista de doenças da "psique humana".
A nuvem negra pairou nas suas cabeças, a roleta russa girou, e as desventuradas foram escolhidas para pesquisar a respeito da esquizofrenia.

A dica do professor (que não poderia ter sido pior...) foi fazer uma visita ao manicômio Juliano Moreira.

Cíntia, Marley e Jessica surpresas e preocupadas, com a tarefa maluca num ambiente de tresloucados, não tiveram outra opção e organizaram-se da melhor forma possível para o desafio.
A "casa de repouso" localizava-se numa região de difícil acesso, nos confins da periferia de Salvador, então Cíntia pediu ajuda sua tia Nádia, que era muito bem informada, tinha uma bússola na cabeça e conhecia todas as linhas de ônibus, para lhes guiar ao inglório destino.

O terreiro de candomblé de mãe menininha bateu os atabaques e sua Lyalorixá iniciou os trabalhos ordenando seu Axogun (O Sacerdote) a decapitar a primeira galinha em oferenda à quem quer que fosse.
Os orixás foram chamados à labuta: Xangô foi acionado, que em seguida chamou Oxóssi, que implorou por Óba que levou junto Oxalá e esse de quebra arrastou Iansã.

Num belo dia ensolarado de verão, enquanto algumas ladeiras estavam sendo lavadas, o Olodum fazia seu ensaio semanal, e o dito terreiro trabalhava ininterruptamente, as jovens partiram em direção ao manicômio e transformaram uma simples tarefa de faculdade numa delirante história que virou lenda desde então.
Desse dia em diante elas passaram a crer na teoria do "Eterno Retorno" do aloprado Filósofo Alemão Friedrich Nietzsche. 
Um dos aspectos da teoria diz respeito aos ciclos repetitivos da vida: "estamos sempre presos a números ilimitados de fatos, que se repetiram no passado, ocorrem no presente e se repetirão no futuro". Enfim, assim foi, assim é e assim será, eis a sua lei ... 



 Capítulo 1 - É proibido fumar.


   Chegando ao manicômio Cíntia apresentou-se na recepção explicando o motivo da visita e as demais do grupo a aguardaram na mesma sala. Nesse meio tempo Nádia, fumante descontrolada, acendeu seu cigarro, relaxou e aguardou pacientemente o início da visita. 
A recepcionista reparou e disse  que era perigoso fumar no ambiente porque a maioria dos internos tinham vícios de alcoolismo e tabagismo o que poderia provocar uma reação em cadeia com efeitos inesperados nos ditos "hóspedes".      

Os orixás são ancestrais divinizados africanos que correspondem a pontos de forças da natureza, por exemplo: Oxossi das florestas e matas, Ayrá dos raios e ventania, Oxumaré da chuva e arco-iris , Xangô responsável pelo fogo, etc.  
Esse último recebeu um chamado de urgência, apresentou-se, perambulou pelo ambiente e percebeu que teria que agir. 

Nádia, despreocupadamente, continuava no seu incorrigível ritual tabagista espalhando fumaça para os quatro cantos da sala. O aumento da temperatura e os fluidos energéticos emanados da  ação "acender cigarro" fez Xangô aproximar-se do recinto e circundar a fumante. 
Cíntia correu em direção a tia e alarmada alertou do perigo e refez a recomendação da recepcionista. Infelizmente  não houve tempo para qualquer ação preventiva pois ao concluir sua recomendação aconteceu o que poderia ter sido evitado:
surgiu correndo de um dos corredores uma mulher de mais ou menos uns 40 anos, de roupa branca, cabelos desgrenhados, olhos esbugalhados em órbita e foi se aproximando, se aproximando, e se aproximando...   

A  fumante só sentiu o tabefe na cara: PATAFFFFFFFFFFF .... e quase desfalecida sentiu um terrível zummmmmmnnnn no ouvido e um queimar terrível no lado direito do rosto. A desvairada arrancou o cigarro da boca de Nádia, deu um empurrão e saiu correndo pro mesmo lugar de onde tinha vindo. Os enfermeiros saíram correndo atrás e ela desapareceu pelos corredores adentro.

Na cara da tia Nê ficou a marca da fúria da antitabagista desvairada e isso já bastaria para que o grupo recuasse e corresse ao professor suplicando por uma outro tarefa menos estressante. Mas não, elas foram em frente, resolutas, empurradas pela roda-viva do destino.

Nuvens negras e carregadas as seguiram para a próxima etapa...   



Capítulo 2 - Entre as grades


  Após o bofete as jovens continuaram a excursão;  percorreram um longo corredor principal, com portas fechadas dos dois lados, e em seguida desviaram por outros corredores. À medida que caminhavam iam surgindo portas com grades indicando que nesse espaço deveriam estar os internos mais problemácos.

Quem assistiu ao filme de 1980 "The Shine" - ou pra nós aqui no Brasil  "O iluminado", com certeza estaria lembrando dos tenebrosos corredores do hotel Overlook, onde o personagem principal, interpretado brilhantemente por Jack Nicholson, percorria desvairadamente em busca das suas duas vítimas, a mulher e o filho.  

 Quando atravessavam um dos corredores Cíntia ouviu uma voz chorosa partir de dentro de um desses quartos gradeados. Apesar dos alertas da enfermeira tomou a decisão que mudaria o rumo da história e confiante aproximou-se da grade e deu um bom dia, bem educado:


- Boa diaaaa !!

O hóspede surpreso com a atenção retribuiu: 

- Bom diaaa jovem, a seu dispor !

Cíntia retribuiu:

- O senhor gostaria de ......

Antes de completar a frase o dito esquizofrênico iniciou uma impressionante e lúcida descrição da sua situação:

- Querida, que bom que você veio me tirar daqui, eu sabia que esse dia chegaria, estou recuperado, minha doce amiga, cadê a chave, você trouxe né ?! graças que os Orixás não me esqueceu.

Cíntia impressionada e sensibilizada pela educação e tranquilidade do senhor foi se aproximando das grades com lágrimas nos olhos de emoção.

- Sofri muito, passei parte da minha vida aqui. Me esforcei, tomei os remédios, estudei muito, orei, serei um novo homem. Guiarei a vida de outros graças hoje ao meu aprendizado nessa santa casa.

Cíntia agarrou com suavidade a grade e comovida, coração nas mãos, aquele aperto no peito, escutava atentamente o falatório do ilustre desconhecido aproximando-se da grade.

Ao chegar a grade o santo homem transformou-se, agarrou os braços de Cíntia, mudando de polaridade (os esquizofrênicos mudam repentinamente de humor e na maioria das vezes, ao contrários dos só bipolares, tornam-se agressivos e perigosos) e os puxou por entre as grades pra dentro do quarto vindo junto também o rosto e o corpo da nossa amiga. 

Começou um escândalo infernal. Ele gritava de um lado e Cíntia de outro:

- VOCÊ VAI ME TIRAR DAQUI, EU NÃO SOU LOUCOOOOO, EU SOU NORMAL, ME LEVA DAQUI CRIATURA ....EU QUERO É SAIR... .VOCÊ ENTRA E EU SAIOOOOOOOO !!! 

A voz aterradora uivava no corredor.

Os braços da jovem ralavam nas grades, a cabeça batia no ferro, o corpo estropiado esfregava-se nas barras paralelas.

Cíntia berrava:

AI MINHA MÃE MENINHA, MEU BABALORIXÁ DO RIO VERMELHO, MEU XANGÒ, MEU OXOSSI, ME AJUDA, NUM QUERO MORRER AQUI NÃOOO ......


Os gritos endemoniados do louco ecoavam pelo corredor juntamente com os berros aterrorizados de Cíntia. Num vai-e-vem danado: Cíntia puxando pra fora os braços e o doido fazendo o inverso. 

Os atabaques do terreiro da mãe menininha batiam mais forte, dando ritmo ao axé   possibilitando assim uma melhor incorporação dos Orixás......

A luta continuou entre gritos e impropérios dos dois lados. Cada um que berrasse mais alto.

Um enfermeiro correu em auxílio da jovem que se esperneava entre a grade e as mãos do senhor enfurecido. rapidamente abriu a porta e desatracou os escoriados braços de Cíntia das fortes mãos do desenganado hóspede que continuou berrando por um bom tempo. 

Cíntia foi arrastada lívida de terror para uma área reservada onde depois de um tempo tomou folego, energizou-se, os atabaques da mãe menininha rufaram, e continuou sua jornada guiando sua equipe para novos eventos que confirmariam o  "Eterno Retorno" do alemão desvairado. 
 

CAPÍTULO 3 - Oh ! Jéssica.

 


  As estudantes continuaram sua caminhada pelos corredores e a nuvem negra as seguiu por todo os espaços do hospital psiquiatrico; lá dentro o dia continuava escuro.   

Após saírem de um dos andares ouviram uma voz bem fininha chamando por uma pessoa mas inicialmente não entenderam por quem. A voz foi aumentando, aumentando e finalmente com muita nitidez ouviram:

- Jéssica, Oh !  Jéssica

- Jéssica, Oh ! Jéssica 

 Ei, Jéssica, alguém tá te chamando - disse Cíntia.

- Eu não, não conheço ninguém em manicômio - respondeu Jéssica

A voz do além continuou: 

- OH ! JEEEEESICA, OH ! JEEEESSICA, VOCÊ VEIO ME BUSCARRRRRRRR .... ??

- olha aí Jessica, é com voce mesma - Disse Cíntia.


Foi aí que Jéssica reconheceu a voz e dirigiu-se à esquina do corredor para confirmar o que já sabia. Voltou espantada e contou que sua ex-empregada doméstica era agora uma das internas. Ela tinha trabalhado na sua casa anos atrás e tinha sumido, após uma folga domingo, e não deixou qualquer vestígio de sua alma até então. 
As buscas. foram em vão, seus parentes percorreram todos os quatro cantos da cidade durante três meses, os 1.165 terreiros catalogados foram vasculhados milimetricamente, de Abá Fujá ao Abaça de Axé, da Zazi Mucundê ao mais famoso de todos, da mãe menininha do Gantois. Mas Jéssica nunca mais teve notícias sua.

O desgovernado do Nietzsche, que várias vezes foi internado na sua conturbada vida,  acertava em cheio.

As garotas saíram com os corpos carregados, pesados, arrastando-se, a procura de uma "Defumação de Descarrego" afim de aliviarem suas almas.

 
Capítulo 4 - Como no tempo do velho Oeste. 

  
   Ao sair da casa de terror alguém sugeriu um lanche e um café no local mais próximo e por uma dádiva do destino e do filósofo  encontraram uma lanchonete a poucos metros do hospital.  

Sentaram-se na primeira mesa que encontraram, bem ao lado da porta de entrada, pediram pão com queijo e café. Era a única mesa ocupada, além delas a população se restringia ao garçom e o atendente, onde num balcão mal cuidado arriscavam um sonolento, sofrível e interminável  jogo de domínó. 
O pedido foi atendido depois de muita insistência e o café com pão trouxe de volta um cheirinho caseiro que fez as meninas esqueceram as desventuras da terrível casa de recuperação.

Seguindo um roteiro dos filmes de velho oeste um terrível barulho partiu da  entrada da lanchonete e viu-se um estranho jovem dando os boas vindas com um chute porta adentro. 

Novamente o "Eterno Retorno" chegava com todas as forças do Kiumba Caveira (Espírito do mal no Candomblé).

O sujeito, alto, forte e louro, e com cabelo baixo, chegou gritando impropérios, alucinado, babando, olhos vermelhos e aboticados e com um revólver na mão:

- QUEM QUER MORRER QUE DÊ UMA PASSO À FRENTE, EU MATO TODO MUNDO !

- HOJE EU MATO UM ! 
 
- QUEM SERÁ O PRIMEIRO ? - e olhando as meninas, completou - OU A PRIMEIRA ?

- KKKKKKK

- MEU DEDO TÁ COM UM TIQUE-TIQUE NERVOSO ... HAHAHAHAHA

Começou a circular, como um leão faminto, dando voltas entre as mesas e o balcão de atendimento, bufando, revólver na mão, e repetindo a mesma reza: eu mato , eu mato , eu mato. 
Só existia a porta da frente como emergência para uma fuga  e o maluco a bloqueava, então o que restou foi esperar pelo pior: tanto as meninas quanto os dois funcionários aguardavam sua vez para conhecer o Orum..

No Candomblé o mundo que vivem os homens, o mundo dos vivos, é chamado de Aiê, e o mundo do sobrenatural, o "paraíso", onde estão os Orixás, as divindades e os espíritos bem aventurados, e onde vão os que morrem, é chamado de Orum. 
Pode-se retornar ao Aiê renascendo e aí o ciclo continua, num vai-e-vem eterno entre o Aiê e o Orum,.até atingir a iluminação completa e se estabilizar no Orum.

As jovens não tinham a intenção de ir para o Orum tão cedo e aterrorizadas olharam nos olhos do louco que percebendo a atenção iniciou um diálogo surreal: 

 
- EU QUERO É MANDAR GENTE PRO INFERNO -  a alça do gatilho balançava entre seus dedos.

- Calma meu senhor, paz na terra aos homens de boa vontade - Cíntia lembrou das missas dominicais da infância.   

- CALMA NADA, VOU CUSPIR BALA, ARRANCAR O COURO DE UM ... KKKKK

- Mais moço por que isso ? - Nádia ainda com a marca do bofete questionou. 

- NUM SEI, ACORDEI MEIO ASSIM, E SE TIVER TATUAGEM VAI CHEGAR MAIS RÁPIDO NA CASA DA BESTA. . kkkkkkkkkk

 
Desesperadas Cíntia escondeu a sua bela tatuagem na nuca soltando o cabelo e Marley colocou as pernas para dentro da mesa tirando da vista a sua também.

 
- E SE NÃO FOR PROFESSOR VAI LEVAR DUAS BALAS AO INVÉS DE UMA , E ANTES DISSO TIRO UMA LASCA DE COURO DAS COSTAS SÓ PRA JUDIAR....KKKKKKK.

- QUAL A SUA PROFISSÃO ? - perguntou a Cíntia

- Professora de Ciência.

- E AS SUAS ? - perguntou as demais meninas

- Professora de Biologia, História e Matemática - responderam as outras percebendo que a resposta de Cíntia seria a chave da salvação.

O doido relaxou:

- Que ótimo, vou levar vocês lá pra casa, meus filhos estão precisando de aulas de reforço.. 

O dono do bar intercedeu;

- Deixa as meninas sairem rapaz, num tá vendo que elas são professoras ?!

O louco varrido foi se acalmando e mudou repentinamente  de papo afirmando que agora teriam sua proteção e que poderiam ir embora sem ser molestadas por viva alma. Ficassem descansadas, suas almas estariam protegidas.
As meninas aproveitaram o momento de fraqueza do Django e pulando das cadeiras saíram em disparada porta afora, mundo adentro, seguidas pelo pistoleiro.

A fila indiana saiu com Cíntia coordenando o grupo e o tresloucado na retaguarda de olhos virados de um lado para o outro em busca de qualquer engraçadinho que se metesse a besta com as belas garotas filhas de Iansã.
De repente surgiu duma esquina obscura, dos quintos do beco sujo, um malandro metido a palhaço com piadinhas indecorosas em direção as jovens. Como era de se esperar o filho do Kiumba não estava com sorte, porque bastou o segurança desregulado perceber a brincadeirinha, levantou a mão e largou o primeiro tiro, os dois saíram correndo, um atrás gritando e atirando com sua lança de fogo enquanto o fugitivo desembestado na frente pedindo socorro.

- VOU TE MATAR CRIATURA DAS PROFUNDEZAS, SEGURA O FOGO QUE TÔ CUSPINDO BALA .. KKKKKKKKKKK  

- EU NÃO DISSE QUE MATARIA UM HOOOJE !!!!???

Os gritos repetiram-se por muitas vezes ... 

As meninas percebendo a chance saíram em disparada pro lado contrário do barulho, pernas pra quem te quero, pra longe da nuvem negra, distante dos terreiros assediados pelo Kiumba e pela Pomba Gira,  em disparada buscando o porto mais próximo para ancorar, o do Ilé Axé Oyakayodê !

Lá, os trabalhos de descarrego das emanações do mal seriam executados, extirpando-se definitivamente as nuvens negras que pairaram durante todo o dia, e assim a teoria do filósofo alucinado seria esquecida e ficaria apenas lembrada nos livros de introdução a filosofia. 




- Conclusão :


Poderia ser ficção, fruto da imaginação e criatividade de algum autor de crônicas do cotidiano ou até mesmo da própria Cíntia que nos relatava. 
Por mais surpreendentes que se pareçam as aventuras descritas são reais. Os personagens também. As desventuras em sequências passadas pelas jovens baianas são surreais e mereciam ser registradas de alguma forma. E assim foi feito !   
Numa noite fria da cidade de Foz do Iguaçu,  entre um vinho e outro, ao lado das queridas amigas Cíntia e Nadja, destrinchamos o caso, palavra a palavra, frase a frase, pedimos mais, precisávamos de detalhes, queríamos tudo. 
Trocamos e-mails, replicamos, e as respostas foram melhores do que esperávamos e o resultado tornou-se esse texto. 
Finalmente descobrimos que a nossa amiga Cíntia, aqui e agora, é uma excelente contadora de histórias ; uma verdadeira Forrest Gump.      
    



  


   








   











  






   






       
    







  

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Onde tudo isso começou: ZP x GP



  Lembro que quando cheguei na rua Capolis, em 71, o nosso amigo ZP era o tremendão (tipo Roberto e Erasmo): cabelo aos ombros, altura mediana, magro, tinha uma Maxi puch e desfilava pelos arrabaldes do bairro todo orgulhoso, altivo na sua condição de menino rico. 
Morava (e ainda hoje assim o faz) numa bela casa de primeiro andar bem na frente da minha. Nós, os proletários,    admirávamos aquela figura rebelde, cabelo ao vento, saindo  diariamente na sua bicicleta motorizada. Sonhávamos o sonho impossível, sabíamos que jamais teríamos uma dessa.   

Maxi puch

Assim que o conheci soube que o ZP jogava muito bem futebol, era o ponta direita favorito do dono do time da rua vizinha, a "Abataé", onde normalmente ocorriam as peladas do dia-a-dia. 

Depois de um certo tempo fui entender que o proprietário do time era um cara, alto e magro,  que andava com a camisa do “Sport Clube do Recife” pra lá e pra cá pelos quatro cantos do bairro. 
Nas sextas-feiras à noite ele esquecia sua atividade de dono de time de futebol e saia de casa bem vestido, calça e camisa brancas, sapato preto brilhando, mas não porque era médico ou veterinário, e sim por causa do título de Pai de Santo de um terreiro estabelecido ao lado do canal do Jacaré (margeava  o campo de futebol onde ocorriam as peladas de sábado à tarde).   

As más línguas diziam que aliciava jovens adolescentes pra seu time de futebol. Esse torcedor rubro-negro chamava-se Didi. 

ZP era tipo um playboy do subúrbio, astro do time de futebol juvenil e namorador das “meninas” que Didi arrumava pra ele. Namorou várias. Todas trabalhavam nas casas de família da região. 

O jovem desfilava, toda tarde, naquela bicicleta barulhenta. Soube depois que o objetivo do passeio era ir até a rua vizinha onde Didi reunia os "boyzinhos" do time para um treino diário. O treino era baseado em musculação e era fechado ao público porque sediava-se dentro da sua casa (vizinha ao Bar chamado Lanterna Azul que ficava bem na esquina da rua). Só entravam os adolescentes mais parrudinhos (fortinhos), sendo desprezados os raquíticos.

Dizem que esse ritual durou muito tempo até o dia que um outro amigo nosso, chamado GP, chegou por lá, acho q por volta de 74.
GP tornou-se adversário de ZP no futebol, sendo arrecado para os mesmos fins de Didi pelo empresário Nélsino Embuá que formou um novo time.
GP teve sucesso como lateral esquerdo e depois de um tempo, pegou corpo, ficou toradinho, apesar de ser mais baixo que ZP, e deixou o cabelo crescer tonando-se o jogador favorito do Embuá. 
GP não era rico, ao contrário de ZP, e assim como nós, era de família de proletários, mas tinha uma bicicleta (sem ser motorizada) e nela, com frequência, caroneava seu patrão no bagageiro.

Aos poucos GP foi marcando e tomando o território do ZP, Embuá o apresentou as "meninas" da vizinhança, aquela das casas de família, e por instinto natural, talento nativo, superou o playboy em quantidade de "meninas" e no futebol, perdendo apenas em possuir a Maxi Puch.

A grande rivalidade entre os dois começou num dia que ZP gostaria de esquecer, apagar da sua lembrança e dos demais que presenciaram o fato, bem como dos outros que só ouviram pela boca já de outros, tipo aquela brincadeira de criança chamada "telefone-sem-fio".
O negócio foi assim: ZP num infeliz jogo de futebol, bem antes da aparição de GP,  levou uma bolada nas regiões baixas, caiu no chão berrando e as duas mãos em forma de concha cobrindo e apertando seu objeto sexual, Gritando registrou pra a eternidade o que não queria que fosse registrado: 

- Ai minha Piquinha !! ai minha Piquinha !! meu Deus do céu !! , .. ai..ai..ai ..  

Não deu certo, foi o alerta para que seu time inteiro, seus adversários, e a platéia que se estendia ao longo da calçada, gritassem em coro: ZP, ZP, ZP e ZP .....

GP, a medida que soube da história e foi se enturmando na região, desenvolveu um complexo de superioridade platônico em relação ao seu  "objeto', Muito justificável visto que as "meninas", as mesmas compartilhadas por ZP,  já haviam mencionado pelas esquinas e becos do  bairro que apesar de pequenininho em altura, o jovem tinha seu "objeto" lambendo o chão consideráveis centímetros além do dono da Max Puch. 
Quanto ao trauma da Bike, esse continuava, sentia-se muito inferior. Ficava louco da vida. Era a eterna luta social (burguês x proletário).

ZP ao saber dos comentários revoltou-se: 

- como um porretinho daquele, que nem alcança direito o pedal da bicicleta, poderia competir sexualmemte comigo ? 

Essa pergunta infernizou seu espírito, dia-a-dia, mês-a-mês, ano-a-ano , e a partir daí a rivalidade virou fato e a história virou lenda.   

Surgiram comentários (não sei se verídicos) que Didi e Embuá, apesar de adversários em campo, eram muito amigos e no dia-a-dia faziam festinhas “suspeitas” todo sábado na casa de um ou de outro, onde só entrava os melhores jogadores dos respectivos times. Não sei se foi a partir daí (nessas festas), onde as boas línguas diziam, pra entrar tinha q tirar a roupa, que os dois amigos iniciaram a rivalidade peniana que dura até hoje. 

Nós, os amigos do peito (GMS, BFA, PD, NS e CF), pra resolver de vez essa pendenga, que perdura até os nossos dias, sugerimos um encontro no Lanterna Azul onde os dois poderão tirar satisfações (diga-se medições).
Dentro do pequeno banheiro do humilde bar, um de frente pro outro, terão seus objetos medidos. Para não ocorrer fraude um mede o do seu oponente podendo ocorrer remedições (replicas e treplicas).  
As regras serão elaboradas e ratificadas (um das quais será a citada acima) pelo nosso amigo BFA e a manutenção da ordem (brigas por causa de possíveis divergências nas "medidas") ficará a cargo do CF, ambos em virtude das suas qualificações profissionais.
PD, NS e o GMS serão os responsáveis pelo violão e a seleção musical, respectivamente. 

O Duelo das Espadas, como será chamado, será relatado em outro episódio ...  



  
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quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

A Mulher que virava macaca : Monga ou Monca, eis a questão...



    

  Os alienígenas iam chegando aos pouquinhos, devagarinho, na calada da noite, a medida que a lua de verão alargava seu rastro na deliciosa praia do Pina. 
No meio da terra batida e dos matos secos, entre o mar e avenida Boa Viagem, surgia a roda-gigante, o trem fantasma, o carrossel, o chicote, o barco-voador, as barraquinhas de tiro ao alvo, cervejas, algodão doce e maças carameladas, churros e demais comidas regionais.  
   
Esse era o costume todo o ano bem na frente da nossa casa, onde sem maiores explicações materializava-se um pequeno e humilde parque-de-diversão, típico de qualquer cidadezinha do interior. Era uma Excelente opção para os desocupados e os estudantes dependentes do crédito educativo, os quais sem muito a escolher para a noite, por motivos óbvios, ali sentava, lá se estabelecia, fazendo dessa forma o tempo passar. 



Foto tirada da nossa casa na avenida boa viagem: aos fundos a Roda-Gigante do Parque e atrás desse a praia do Pina.



Assim era e assim fazíamos: eu, Alexandre, Carlinhos e Aníbal estávamos lá, de corpo e alma. Chegávamos no início da noite, escolhíamos uma barraquinha qualquer, com o gesto tradicional (dedo indicador levantado) Alexandre pedia uma cerveja e a partir daí era só papo, renovávamos as novidades do dia, dos jogos na praia, do frescobol, dos filmes no São Luiz e Veneza, das noites de farras nas boates, do aeroclube, etc.
Nas mesinhas, em frente ao mar, cervejas ao vento, um assunto era recorrente e ainda gerava acalorados discussões: o triste dia que um dos nossos tomou a destrambelhada iniciativa de "pedir em namoro" a mais desinteressante menina das redondezas. Decisão infeliz, influenciada em muito pelos tragos de "cuba-libre" numa boate em Candeias, que o fez perder a noção do que é racional e finalmente se comprometer num namoro que o marcaria pelo resto da vida.

Monike não era bonita, era bem dizer "feinha" , mas isso não seria o problema (a beleza está no coração de quem ver) se pelo menos fosse divertida ou até mesmo sensual, ou quem sabe ser bem resolvida sexualmente, e em última opção tivesse recursos financeiros que permitissem nosso amigo se beneficiar de belos jantares, entrada grátis em boates chiques, carro do ano, etc. Mas desafortunadamente nada disso era verdade ...

Enfim, ele rompeu barreiras e manteve o romance por intermináveis quinze dias...

Numa daquelas noites enluaradas fomos ao dito parque, escolhemos uma mesinha qualquer, numa das várias que circundavam a área destinada aos ociosos, e lá as cervejas foram saindo, uma atrás da outra; Alexandre e Carlinhos bebendo desvairadamente e eu e Aníbal na retaguarda, controlando os pedidos, avaliando os riscos, procurando minimizar os gastos  numa noite que poderia se estender por um bom tempo, sem dúvida, até que a gestão do parque desse por encerradas as atividades, pois do nosso lado ninguém sairia da mesa tão cedo..... 

  O assunto Monike estava em moda então quando o auto-falante do parque fez o maior carnaval anunciando a próxima atração, prestamos atenção e imediatamente um dos nossos, o envolvido no rumoroso caso amoroso, levantou as orelhas, ficou alerta, e retornou saudoso aos velhos tempos de passeios na pista de patinação do Pina, entre mão dadas, beijos ardentes, e juras eternas de amor.


- Atenção, atenção, preparem-se, ela está chegando, é perigosa, é perigosa ...

- Olham lá, olhem lá, Monga veio direto da Africa para a praia do Pina ...

- Cuidado, Monga a mulher que vira macaca vai se apresentar em breve..

- Não percam, a maior atração da noite, o grande espetaculo da terra, adquiram já seus ingressos antes que se esgotem ...


Substituindo o "G" pelo "C" a macaca virava o apelido carinhoso da ex-namorada do nosso amigo. Simples joguinho de letra, ou simples ironia do destino, não sabemos ; quem sabe o sexo dos anjos ?!. 
Prometemos ao nosso amigo que a coincidência não iria estragar nossa noite. Cobraríamos no couro da macaca as duas semanas de martírio amoroso, usaríamos ferro e fogo, e a símia sem saber o porque receberia o que bem merecia. Mexeu com amigo, buliu conosco.....

Corremos pra bilheteria e compramos os ingressos. Não lembro se usamos nossas carteiras de estudantes ou até mesmo nosso crachá do recenseamento (eu e Alexandre estávamos nessa de corpo e alma - pelo quatro cantos do Bode e Encanta Moça) só sei que de ingressos nas mãos voltamos à mesa e continuamos no papo, e na cerveja  gelada, enquanto a sósia da Monca vestia-se para o espetáculo.

A hora chegou e corremos para a barraca destinada ao evento. Entramos num quartinho mínimo de terra batida de praia e matos rasteiros (restos de urtigas, palhas de coqueiros, folhas de arruda, etc) e cadeiras de plástico espalhadas por todo o cubículo com o objetivo de assentar quem chegasse primeiro. 
Telhas de zinco cobriam o teto e apesar da brisa da praia o calor tomava conta pois não existiam janelas ou qualquer buraco de onde viesse um suspiro da natureza, tendo apenas uma porta na frente pra o público e outra por trás pra as atrizes do evento. 
Os ingresso foram vendidos além da conta por isso ficamos na parte de trás, sem cadeiras, em pé, típica geral do antigo maracanã. Depois de inúmeras cervejas isso não fazia a menor diferença, nosso objetivo seria vingar o amigo. A macaca iria ver com quantos paus se fazia uma jaula.
Uma "voz do além", o locutor, ia explicando tintin-por-tintin a origem da macaca, que era perigosa, que vinha do Congo belga, bem no coração da Africa selvagem e desconhecida, e quem tivesse problemas cardíacos se segurasse ou se retirasse da sala;  o negócio não era pra os fracos. 
O ambiente em meia luz, a voz rouca do locutor repetindo a mesma cantiga, o calor, o cheiro nada agradável do suado público que superlotava a sala, tudo isso contribuía para uma recepção de boas vindas ao avesso à humilde jovem fantasiada de chimpanzé.

Os tambores rimbombaram a voz do além subiu de tom e as luzes da plateia diminuíram ficando apenas um breve clarão exatamente onde estava a cortina do palco. 

- afastam-se do palco, muito cuidado nessa hora, ela é sensível, a transformação exige concentração - continuava a ladainha do narrador

De repente a cortina desceu e de dentro da jaula apareceu uma mulher jovem, cabelo baixo, pele clara, de biquini bem comportado, dançando e muito tranquila. A luz focou nela e o narrador continuava com o seu sub-espetáculo, numa ladainha dos infernos, lembrando que a beleza transformaria-se em fera brevemente. 

A música ia tocando e o narrador trabalhando...  

A galera que ja estava impaciente, devido a espera e as condições do ambiente, começou a falar mais alto, se mexer, cutucar o do lado, rir do cenário ridículo que não provocava qualquer suspense ; comedia sim, terror não, eis o que víamos. 

Os efeitos especiais eram feitos com um vidro que ficava no meio de um caixa de madeira em L.  As duas mulheres (a de biquini e a macaca fantasiada) ficavam em cada ponta do L. Uma luz refletia no palco a imagem da primeira mulher e enquanto essa luz ia se apagando a outra luz refletia a imagem da macaca sobrepondo a dançarina e aí continuava até a original desaparecer. Física ótica, simples, simples !  



Resultado de imagem para o truque da mulher que vira macaco



Os primeiros gritos apareceram:


- UHUUUUU !!!  Gostosa, senta no meu colo, tira o biquini, vem comer no meu prato ....

- UHHHHHH !!!!! 


Mais gritos quando os reflexos fizeram efeito e os pelos começaram a surgir na dançarina:


- UHUUUUU !!!! sai dai quenga, volta pra africa, vem pegar minha banana ...

- Compra uma gilete, raspa esses pentelhos ...

- UHUUUUUU !!!!!



     Resultado de imagem para mulher que vira macaca 



E aí acompanhamos a platéia :  

- Fica aí Monike, teu lugar é na jaula mesmo !!!

- Mãozinha ralante, rosto de lixa, linguinha de ralar pregoooooo

- UHUUUUUUU !!!!  

Nosso amigo fez cara feia ... 

Alguns meses atrás, durante dias de sofrimento, nosso amigo foi apartado do grupo por Monike, entre abraços e beijos no sofá curtindo o Fantástico, e finalmente em alto estilo na pista de patins, manteve um relacionamento que só tinha um justo fim, o fracasso. Dito cumprido. Em poucos dias e após fogo serrado do grupo, pressão diária, o feitiço foi desfeito e o casal separou-se por encanto. Motivos ninguém soube, nem nos foi revelado por ele. Mas isso era o que bastava, no fim de tudo, finalmente nosso amigo voltava ao convívio dos seus parceiros. 

A gritaria aumentou quando a mulher virou macaca, a física ótica fez seu trabalho e a chita começou a balançar a grade e urrar, junto com o narrador que continuava com seu discurso animalesco. 
A símia esmurrou o peito seguidamente e de repente abriu a grade simulando uma fuga platéia adentro. 

O narrador gritava:

- Ela fugiu, corram que é perigosaaaa, ela arranca o couro de um .. 

- UHUUUUUUUUU 


A plateia urrava:

- Peguem a Monga, peguem a Monga

- Vamos arrancar uma lasca de couro dela


- UHUUUUUUUUU  



Alguém redefiniu:

- Peguem a Monca, peguem a Monca

- Peguem a Monike, peguem a Monike.


O caro amigo não gostou do trocadilho e replicou:


- Peguem por@a nenhuma, só quem pegou foi euuuuuu .... 


A gritaria continuava..  

A ideia da fuga da jaula não foi adequada ; infeliz roteiro de filme classe "b". Do público os gritos aumentaram, mas não de medo e sim de gozação, mãos em punho ameaçavam, copos voavam com restos de cerveja, sementes de carrapateiras, bolinhas de papel, caixa de fósforo empacotadas com areia, galhos de urtiga, todos os recursos da natureza eram usados contra a nativa. 
A Monga assustou-se, fechou a grade e desembestou-se palco adentro, praia afora, mar aberto, no imenso oceano nadando em direção leste, sempre a direita, em busca do sol nascente. 
As luzes se acenderam mas a turba endemoniada continuou com os gritos, bolinhas de sementes ainda voavam para o palco,  até que a voz do além deu por encerrada a ridícula apresentação. 
Era a última atração da noite, o último evento do parque, e para retornar a cerveja tivemos que atravessar a avenida boa viagem e ir ao encontro do Edis Bar, onde la terminamos de lavar a alma e a honra do nosso amigo.  

Deste dia em diante não vimos mais Monga, nem Monca, nem o parque-de-diversão, tudo esfumaçou-se com a ajuda do implacável tempo que soprou pra longe nossas lembranças aqui registradas.