terça-feira, 7 de abril de 2015

Nosso último verão



 O jogo de cartas chamado Whist surgiu no século 18 na Inglaterra  e de forma inimaginável tornou-se um sucesso entre nós a partir de 1978, após Ajax ter tido a suprema coragem e audácia de importá-lo da Europa para essa terra distante.
Chegando ao Pina o jogo foi adaptado aos trópicos substituindo-se o chá inglês  por vodka com sukita ou "cuba libre" e torradas por batatinhas fritas. Foi um sucesso !

Naquele final de janeiro de 1981 a praia do Pina estava mais linda do que nunca e nossa rotina diária mudaria drasticamente em poucos dias com a volta às aulas. Voltaríamos a pegar o terrível ônibus circular CDU-Boa Viagem-CDU, um pesadelo diário que passava às 06.30hrs no nosso ponto na Conselheiro Aguiar (defronte da rua onde morava Alexandre), num trajeto dos infernos (pessoas se espremiam nos corredores,  motoristas e cobradores irritados, crianças chorando, pedintes e vendedores ambulantes, etc) até o terminal em frente a faculdade de Engenharia na UFPE onde a massa errante se dispersava em direção aos vários centros do campus.
  
Numa linda noite enluarada onde os cachorros ainda uivavam nos becos do bairro e a família Adams (Roberval, Monike, Socorrita, e cia) teimava em fazer parte do nosso mundo (e principalmente de um amigo em especial...) nos reunimos no terraço da casa de Alexandre e essa pequena área retangular,  cercada por grades com uma entrada pelo jardim e outra pela sala principal, presenciou um jogo que não terminou, uma bebida que se acabou e lembranças que jamais nos deixarão. 
Sentados no chão - eu, Alexandre, Aníbal, Marta, Andréa e Klênia - em círculo onde o jogo deveria seguir o sentido horário, mais uma vez passamos a fazer parte da história.  

O jogo começou e Alexandre foi sorteado para distribuir as cartas e as fez dando uma para cada um até encerrar o montinho, mas não esperou sequer iniciar o jogo e já virou sua dose de Run. Acompanhei o amigo, bebi, e iniciei o jogo lançando uma dama de copas, 

Minhas lembranças voltaram dois anos atrás:

O escândalo descomunal que Waleska fez no cinema nas várias cenas terror de um dos maiores clássicos de ficção científica da história, o  filme Alien o 8º passageiro, que passou por aqui em 1979 com um tremendo sucesso no cine São Luiz, balançou a sala de projeção. Ela berrava alucinadamente na sala, segurando os dois braços da cadeira, os olhos em órbita, o corpo se projetando pra frente. O estardalhaço durou todo o filme e saímos não aterrorizados com o alienígena inocente e sim com os gritos da nossa amiga.





A regra era o próximo jogar a carta do mesmo naipe que iniciou a rodada. Aníbal jogou um valete de copas e mesmo sem ser um grande bebedor brindou o seu primeiro copo de cuba ; sua língua cuspiu fogo.

Em seguida Andrea jogou, depois Marta e depois Klênia, todas lançando suas cartas de copas e virando suas doses. 

Em cada rodada ganha todas as cartas da mesa quem tiver jogado o valor mais alto do naipe. Marta tinha colocado um rei de copas e levou a rodada sem querer pois nem da regra entendia direito.

Alexandre mudou de tática e jogou uma carta de paus, um oito, e virou mais um copo...

Em sua mente vieram as imagens de uma noite de festa na casa de Padilha que ficou para a história: Marta recebeu o convite e nos repassou imediatamente; seu amigo do Marista morava numa linda casa em Boa Viagem, a  maravilhosa piscina (nosso objetivo principal) ficava numa área alta na frente do imóvel. A noite passou rápida com um animado banho de piscina, bastante  comida, bebida e uma animada batucada. Já no final, ao apagar das luzes, Alexandre cismou de ir ao banheiro e lá  inexplicavelmente pegou a primeira toalha a vista e dirigiu-se para se enxugar na sofisticada sala principal da residência. Nesse momento de descuido, ou de audácia absurda, entre tapetes persas e móveis de jacarandá, esbarrou nada mais nada menos com o dono da casa, o pai de Padilha, que levantado mal-humorado do seu sono dirigia-se para dar por encerrada a festa. 
A cena foi bizarra: de um lado Alexandre segurando a toalha esticada na altura dos ombros, na mão esquerda uma ponta do pano e na direita a outra, preparava-se (imitando a famosa propaganda dos cotonetes Johnson) para enxugar as costas, do outro lado em sentido de combate o dono da casa (da festa, da sala e da toalha..) mirando-o olho-a-olho pronto pra enviá-lo para o outro lado mundo.       
Em questões de segundos Alexandre desapareceu da sala e nós, logo depois, junto com ele, da festa e nunca mais vimos o azul-piscina do nosso amigo Padilha Filho.  

Era minha vez e joguei um nove de paus e virei meu copo de cuba...

Frequentemente íamos, nos domingos após à praia, à casa de Alexandre bater um papo e tomar umas cervejas com seu pai (seu Zito) e seu tio Ozires (figura sempre presente nesses dias). 
Os papos eram bastante divertidos, iam de política e futebol a curiosidades do dia-a-dia. Um dia em especial nos traz recordações hilárias : tio Ozires só bebia cachaça e a garrafa da Pitú já passava da metade quando chegamos por lá. Ele reclamava de uma dor de dente terrível. O dente estava num estado que balançava ao ser tocados. Cada balançada era um berro. 
Ozires então resolveu o impensado e determinou enfaticamente: 
- vamos arrancar o dente. passa uma linha Zito.
Prontamente seu Zito arrumou uma, amarrou no dente e iniciou uma contagem regressiva, entre goles de cervejas e cachaça, aos berros, rindo e se divertindo, e anunciando o fim do dente. Tio Ozires corria ao redor da mesa, Tio Zito atrás contando, com a linha esticada, e nós seguindo, rindo e bebendo.
Após algumas voltas nesse ritmo a contagem chegou a zero e de um sopapo de braço o dente voou da boca do adoentado, entre gritos de dor e gargalhadas percebemos o fio de linha balançando na mão de tio Zito, e o troféu amarelado e estragado pendurado refletia o resultado de uma manhã de cachaça.
Alguns anos depois, ainda na década de 80, tio Ozires faleceu e deixou uma grande saudade desses dias.

Aníbal com um copo de rum na mão jogou mais uma carta de paus...

Suas lembranças voltaram ao dia que encontramos uns amigos do Marista no Edis Bar, no Pina. Nesse dia Alexandre estava inspirado e propôs já na mesa uma disputa para eleger quem seria o rei da cerveja. Os cachaceiros do colégio não sabendo a fama do gerador da ideia toparam na hora a disputa e a partir daí iniciamos uma alucinada corrida em direção ao pódio.
Com o decorrer da tarde, aos pouquinhos os principiantes ia saindo da roda: eu e  Aníbal fomos os primeiros, desistimos, mas continuamos na mesa agora apenas como espectadores.
Após incalculáveis rodadas Carlinhos se segurava como podia na cadeira. Os dois amigos do Marista, olhos trocados, esbugalhados, resistiam e Alexandre lá no seu cantinho, sereno, firme, virava cada copo como se fosse água.
Conversa vai, conversa vem, bebida vai, bebida vem, e Alexandre contando piadas envolvia seus adversários mentalmente e fisicamente. Assistíamos impassíveis, agora com Carlinhos que tinha se juntado ao grupo dos perdedores, nosso amigo destruir impiedosamente os novatos.
A cena foi hilária : já no fim-da-noite, vimos os novatos ajoelhados, completamente embriagados, desistindo da disputa e em coro uníssono gritando "Ave Cesar" e elegendo Alexandre como o "Rei da Cerveja".

Voltando ao jogo..

Depois de várias rodadas a mesa (ou o chão) já estava uma grande bagunça, muitos misturavam as regras, trocavam os naipes, erravam a ordem de passar as cartas invertendo o horário pelo anti-horário. O rum  fazia seu lúdico efeito e as imagens dos nossos verões passavam mais rápido agora..

O recenseamento que fizemos - eu e Alexandre - no início de 1980, foi inesquecível. Passamos no concurso para recenseadores temporários do IBGE e fomos convidados para trabalhar nas ramificações do Pina, nas favelas do Bode e da Bacardi.
Estávamos conhecendo o verdadeiro Brasil: gente que desconhecia o ano de nascimento (lembro que alguns me diziam - nasci no ano que o Doutor Getúlio Vargas mandava no país) outros não sabiam nomes do pai ou da mãe e muitos não tinham qualquer instrução, mal sabiam ler ou escrever. Saneamento na maioria dos casos não existia. Perguntávamos - Onde é o banheiro ? e a resposta era um dedo apontando a beira do rio. Esse era o retrato do nosso país..
Ganhamos um bom dinheiro (cada casa visitada recebíamos uma determinada quantia) e além disso o que nos agradou foi  a oportunidade de entrar nos ônibus de graça : bastava apresentar o crachá e a pasta do IBGE ao motorista - regalia dada pelo Governo aos recenseadores. Usamos essa facilidade não pra trabalhar mas para ir a cidade e lá, nos diversos cinemas (indo do São Luiz ao Veneza, Trianon, Art Palácio, Moderno, Ritz , Astor e finalmente AIP), conferíamos os melhores lançamentos do momento.
Foram três meses de muito trabalho, sol escaldante, poeira no rosto, cachorros ameaçadores, mal recebidos por uns (não abriam a porta da casa), bem recebido por outros, mas no fim cumprimos nossas tarefas.
Encerrado o censo passamos ainda um bom tempo usando os crachás e burlando a desatenção dos motoristas que mal sabiam que o IBGE já tinha dado como encerrado os trabalhos de pesquisa.

Marta já não lembrava mais das regras e jogou um Coringa  e Klênia mais perdida ainda jogou outro coringa...  

As cervejas nos bares do pina, aos domingos, após a praia, são inesquecíveis e deixaram muitas saudades: Edis e depois Telhado Azul (onde a lenda do Loch Ness Nordestino foi criada por Ajax), Praia Lanche, Big Baby, Rei dos Crustáceos, Peixada do lula, Churrascaria Mocambo (onde iniciamos e terminamos a cachaça do Papa), Maxime, Feijoada do Leopoldo e Caldinho do Jaime, e finalmente o famosíssimo Bar do Erasmo. Eu, Alexandre, Carlinhos e Aníbal éramos recebidos como Reis, conhecíamos os garçons e em alguns casos o dono, como no caso do Telhado Azul/Edis e do Erasmo. Nesse último deixou saudades uma figura folclórica chamada "Seu Soares" que nos divertia bastante com suas piadas e brincadeiras. O velhinho de bigodinho à moda "Carlitos" já estava bêbado quando chegávamos e continuava assim até o bar fechar as portas, quando só então partia em perambulação tropega - de bengala e chapéu coco !! -  pela Capitão Rebelinho e confluências em busca de um novo lar. 

Andréa já com uma garrafa de rum vazia na mão queria pegar o morto (trocando whist por buraco...). 

A noite avançou, rompemos a madrugada e nossa reunião tornou-se um caos. O rum fez seu efeito e o whist não mais existia, a roda tornou-se uma grande bagunça, todos falavam ao mesmo tempo, piadas, brincadeiras e lembranças desses anos passados juntos, iam e voltavam sem cessar.        
Num dos cantos do terraço Klênia não se segurava sentada e se encostava na parede, olhos semcerrados, semiacordada, em transe. Do outro canto do terraço, Andréa completamente  acordada mas perdida no espaço levantou-se da roda com uma garrafa vazia de rum na mão, atravessou a porta e chegou no jardim, parou, observou, marcou um alvo imaginário no muro e a lançou com toda a força que podia. O silêncio da madrugada foi despertado com um barulho enorme que ressoou por toda a casa. Corremos pra ver o ocorrido e vimos a jovem sentada no chão, felicíssima,  admirando os pedaços de vidros que decoravam as papoulas e as plantas rasteiras do jardim.

Fui até o carro e coloquei uma fita cassete com uma coletânea internacional belíssima que Klênia havia me emprestado. lá estava quando de repente a porta do carona abriu e vi Klênia aparentemente recuperada (foi só impressão) entrando e sentando-se no banco ao lado e sorrindo bastante disse - você é o novo dono da fita e Waleska que se vire para ter outra igual; em seguida, num delírio poliglota, começou a falar ininterruptamente em espanhol (morava em Quito), Francês (estudava num colégio francês na mesma cidade), e alguma coisa em Inglês, rindo, chorando, intercalando momentos de lucidez e sonhos, me abraçou e disse que suas férias de verão tinham sido as melhores do mundo.
Andréa e Marta, apesar de não estarem em condições de ajudar quem quer que seja, correram em auxílio a jovem alcoolizada e a retiraram do carro levando-a direto para o banheiro, onde depois de um banho gelado foi jogada na mesma cama que meses antes seu irmão Ajax tinha sido jogado também no festivo dia da passagem do Papa.

Foi o último dia que conseguimos reunir todo esse pessoal....

O tempo passou, casamos, os filhos vieram, houve separações, continuamos amigos, fizemos outros amigos, uns mudaram-se para Brasília, outros  para São Paulo, outro para Salvador, e os demais se espalharam pela cidade do Recife, mas continuamos amigos. 
Deixamos de beber "cubra libre" e vodka com laranjada, rodadas e mais rodadas de cervejas foram esquecidas, o papa não passou mais, garrafas de Pitu jamais.
O fenômeno das discotecas acabou, John Travolta aposentou-se,  e a boate Malibu fechou. Sem ela casais enamorados deixaram de renovar seus votos de paixão.
O bares do Pina mudaram de nome, de dono, de local, e encerraram suas atividades anos depois. A reeleição não mais ocorreu e ainda hoje Alexandre mantém o seu título.   
A família Adams esfumaçou-se no espaço, sem deixar rastros. Sem ela  novamente os casais de namorados deixaram de renovar seus votos de paixão enquanto passeavam de patins pelas praças do Pina.  
O aeroclube encerrou suas atividades e a amiga da empregada da nossa amiga Helena jamais foi vista.
As piscinas secaram, coelhos nunca mais viraram churrasco, voley na rua deixou de ser moda. O Opala branco deixou de desfilar pela avenida Boa Viagem. Junto com ele sumiram as fitas cassetes TDK e os tocas-fitas TKR ; as caixas de sons e tweeters ficaram mudos.
Forró Cheiro do Povo, Casa de Festejos e a Mansão do Fera, fecharam suas portas, e o Projeto Pixinguinha, no Teatro do Parque, não nos recebeu mais.
Na praia desapareceram as esteiras e bronzeadores, trocadas hoje por cadeiras, sombrinhas e protetores solar.

Foi o nosso último verão...    



O tempo passou ....



 Klênia, Paulo, Andrea, Cynthia e Junior - (em 2014 no bar Entre Amigos- Pina)


Carlinhos, Paulo, Alexandre, Helena e Anibal - (Dezembro/2015 - no bar Só Caldinho no Pina)




Helena, Paulo e Alexandre -  (final de 2014 - Bar no polo Pina)



Zé Guilherme, Paulo, Helena e Ana Carolina - (Em 2014 - no bar Entre Amigos - 2014 - Pina)


Waleska e Klênia e filhos (Braíslia - 2014)



Klênia e Erika (Equador - 2014)



Paulo, o irmão de Ricardo GP, Zé, Marcelo e Carlinhos - no bar Lanterna Verde - Novembro/2015