quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Histórias da Tamarineira: O fusca e as domésticas.



O mês de janeiro de 1978 iniciava-se agitadíssimo: a revolução da disco-dance havia chegado ao Brasil nesse verão e balançava as noites das boates (agora transformadas em discotecas..) ao som das músicas dos Bee Gees e na dança de John Travolta. O filme Saturday Night Fever acabava de ser lançado (Dezembo de 1977) e sua trilha sonora maravilhosa, toda composta e interpretada pelo grupo australiano, redefiniu as noites de uma geração de jovens.   
Nessa época nossos dias e noites na praia do Pina eram preenchidos  entre as caminhadas pelas suas areias brancas, o futebol com os desocupados da região (Brasilia Teimosa, Bode, Encanta Moça, etc), as cervejas geladas nos diversos bares do bairro (Telhado Azul, Peixada do Lula, Churrascaria Mocambo, Maxime, Feijoada do Leopoldo, Bar do Erasmo, Praia Lanche, dentre outros) e os balanços dos "Embalo de Sábado à Noite" na boate Malibu e no Caktus Bar.
Enquanto isso no outro extremo da cidade, na Tamarineira, na pacata e bucólica rua Canápolis, longe das discotecas, nosso amigo Marcelo já circulava pelos quatro cantos da redondeza no seu carro novíssimo, um fusca bege, presente de seu pai (o saudoso Dr;Tenório) pelo seu sucesso no vestibular.   


Fusca 1978 idêntico ao usado nos passeios noturnos da Tamarineira


Após um longo e cansativo ano de estudo, agora usufruíamos o resultado dos nossos esforços: estávamos completamente carecas, universitários de carteirinhas e já devidamente matriculados (o que nos fez também subir o Morro da Conceição por ordem da também saudosa Dona Mariinha, cumprindo assim uma promessa sua..). 

Dr.Tenório encontrava-se viajando com o restante da família e assim nosso amigo Marcelo, exercitando seu espírito de liderança, comandava  seu lar, determinava as leias, estabelecia seus horários e escolhia despreocupadamente seus programas, onde beber, onde investir, como buscar suas "namoradas" pelas esquinas do bairro.  

A proposta inicial seria dar umas voltas pela vizinhança e terminar a noite  no bar do viaduto da avenida norte (aquele mesmo que um dia havíamos bebido, comido, e fugido no fusca branco de Petrônio sem pagar a conta....), mas Marcelo tinha alterado a estratégia e pré-estabelecido um novo objetivo: circular aleatoriamente em busca de mulheres, solteira ou casada, não importava, contanto que fossem "domésticas", as quais, na prática, eram mais experientes, vividas, menos reprimida e consequentemente bem resolvidas sexualmente. 
Era uma alternativa mais adequada em relação ao que na época chamávamos de "meninas de família" que exigiam, na maioria dos casos, relacionamentos formais (mãos dadas, pedido de namoro aos pais, beijos discretos e raros "avanços sexuais").  

A genética (pele, altura, corpo, cabelo,etc) dessas mulheres não nos interessava, eram apenas detalhes que tornavam-se insignificantes comparados com objetivo maior que era a  situação laboral de "empregada do lar" cheirando a tempero (alho, quento, cebola, coloral, cuminho, etc) e que lavasse prato, essas seriam as características para serem  incluídas na nossa associação privada, o "Clube das Domésticas".             
A agremiação foi criada nos início dos anos 70, entramos por osmose e ficamos sócios sem querer, a vida nos colocou lá, um puxando o outro, e juntamente com Marcelo, Carlinhos, Zé, Mastro e Ricardo, fizemos escola. Aprendemos bastante, cada um evoluiu no seu ritmo, alguns mais rápido e tornaram-se lideres, outros mais tímidos e ficaram lá na retaguarda na posição de liderados. Porém, sem exceção, todos cruzaram o limite para a vida adulta usufruindo as benesses e regalias destinados ao clube.. 
Enfim, nesse submundo onde o escuro era claro, a lua era o sol, e os muros e calçadas da Canápolis, Abaeté e imediações, eram aconchegos para gemidos e sussurros, serviu de escola para todo o grupo.      
     .    
No sábado a noite partirmos em direção ao nada. Marcelo no volante do fusca beje atravessou o portão do  quintal da sua casa, desceu a direita na Canápolis no sentido da Abaeté e foi reduzindo a marcha até estacionar na esquina do Bar Lanterna Verde. Olhou para um lado, olhou para outro, calado estava, calado ficou. Esperou alguns minutos e novamente deu partida no carro e continuou a marcha dizendo apenas - vamos simbora, acho que elas estão mais pra frente, lá perto da casa de Linduarte, Arsenio, e Bolo Cozido. 


Casa de Marcelo - saida do quintal pela Canápolis

Bar Lanterna Verde - esquina da Canápolis com Abaeté


Bolo Cozido e seus irmãos eram as pessoas mais desconectadas da redondeza, maloqueiros desvairados que circulavam aleatoriamente pelas ruas, dia e noite, sem estudo nem trabalho, e usavam o tempo livre em todo tipo de vagabundagem. 
Eles não eram os únicos loucos, a herança genética havia partido dos pais, e confirmamos isso (o que já era óbvio) quando um dia vimos um fato inusitado, impensado, absurdo e que contrariava toda a lógica de comportamento de uma sociedade civilizada:
Os jovens receberam de presente dos pais um cavalo. O equino foi posto no quintal da casa e ali assentou o local como o seu lar, o seu pasto. Para os passeios diurnos, como a residência não tinha corredores laterais que ligassem o quintal ao jardim, era necessário que o animal, entre uma relinchada e outra, atravessasse a cozinha, abanasse a cauda na sala de jantar, batesse os cascos na pequena varanda, soltasse um "pum" no jardim e finalmente colocasse as patas na rua, onde deveria fazer seu passeio diurno. Em pouco tempo a notícia espalhou-se pelo bairro e a caminhada surreal tornou-se um sucesso até o dia (alguns meses depois) que o pobre animal morreu de inanição. 

Continuamos nosso jornada agora ao longo da Abaeté, passamos pela casa de Dode (Pai de Santo e torcedor rubonegro), da família do treinador de basquete Serrano, e mais algumas outras e ao seu final viramos a esquerda na rua José de Vasconcelos, onde nosso motorista foi diminuindo a velocidade até estacionar na primeira esquina bem próximo à residência dos aloprados.

As domésticas já estavam prontas e a um sinal de dedo de Marcelo (aquele já conhecido código de "venha aqui") se aproximaram e entraram no carro cheirosas e sorridentes. As duas sentaram no banco de trás e novamente o fusca iniciou sua viagem em direção oposta ao que havíamos combinado, para minha surpresa seguíamos em direção a FECIN. 

A FECIN (Feira do Comércio e Industria), onde hoje é o atual parque da Jaqueria (inaugurado em 1985), era uma imensa área cercada de mato que anualmente, na área livre e desmatada, recebia a feira de negócios patrocinada pelo estado. Além da feira, ao seu redor, surgiam algumas atrações populares tais como roda gigante, trem fantasma, tobogã, bares e comidas típicas da região, e tendo como atração especial a Monga - aquela mesma do Pina - "a mulher que virava macaco". 

O local servia também para, nos momentos de inoperância da feira e das atrações, receber casais que desejavam encontros que ultrapassassem o limite do flerte; os carros chegavam de mansinho, devagarinho, e os seus ocupantes, escondidos entre o verde virgem da redondeza, o sussurro da coruja, os mosquitos, os pirilampos e o silêncio da noite, o utilizavam como um motel ambulante.      

As duas amigas de Marcelo, e que já eram minhas amigas também, estavam bastante maquiadas (estilo halloween) e como falamos extremamente cheirosas (provavelmente a "Leite de Rosas"), não muito bonitas (isso era um problema...), mas desinibidas (ótima qualificação..), falavam e sorriam bastante e não se surpreenderam com o caminho percorrido em direção a FECIN, o que era natural já que tudo havido sido planejado entre elas e Marcelo. 
Marcelo, um eterno  galanteador, iniciou um despretensioso papo:

- trabalharam muito hoje ?
- sim.
- aonde ?
- na cozinha
- fazendo o que ?
- cozinhando
- cozinhando o que ?
- comida
- tava boa ?
- claro, fui eu que fiz ?
- quem comeu ?
- todo mundo ...
- Humm, você está tão bonita.....

... No meio dessa conversa inexpressiva chegamos à FECIN e Marcelo emendou: 

- Bem, chegamos.
- Chegamos aonde, cadê a festa, e as barraquinhas de cerveja ? - as jovens replicaram..
- A festa será aqui dentro do carroE bem prático, cartesiano, disse - Du vai pra trás e fica com essa (a mais feia...) e você (apontando para a menos feia..) vem aqui pra frente. Precisamos falar sobre "comida". 

Protestei, a minha indicada era a menos qualificada e não me agradava passar a noite ao seu lado mas não houve acordo (afinal meu amigo era o dono do carro) e num gesto rápido lançou o braço pra trás e puxou a mão da sua escolhida que pulou pro banco da frente. 
Foi tudo muito rápido, em poucos minutos, antes de iniciarmos qualquer ação, o que me recordo foi apenas o toc-toc no vidro dianteiro do motorista. 
Era a polícia que na sua ronda noturna abordou o primeiro carro da fila e que infelizmente era o nosso.

- Boa noite. Documentos por favor.

A ordem vinda da autoridade do bairro foi um belo susto e as meninas reagiram de uma forma que nos assustou.

Não houve retorno. e o que parecia ser o chefe ordenou novamente agora sem o "por favor" e já alterando a voz.

- DOCUMENTOS. 

As domésticas que diariamente pregavam os ouvidos nas sangrentas notícias do Bandeira 2 da Rádio Jornal do Comércio, imaginando-se que seriam as manchetes do dia seguinte, em lágrimas e tremendo fizeram um pedido constrangedor aos policiais:  

- Num prende nós não, somos moças de família, somos virgens, vamos ser "dimitidas" se a patroa "suber".

Tiraram do bolso os documentos, papeis amarelados e amarrotados, e passaram para Marcelo que também apresentou o seu e o do carro, mas não passou a carteira de motorista que ainda não tinha tirado. 
A situação piorou quando procurei no bolso a minha identidade e não achei. Vasculhei novamente o bolso e depois a carteira e nada. O guarda exigiu que saíssemos do carro para uma "conversinha".

Nossa amigas aumentaram o choro...

Nada estava ao nosso favor e tínhamos motivos para isso: o descampado não era apropriado para um "menager a deux", o carro não era motel e o lugar era público, por isso podíamos ser presos por atentado ao pudor ; Marcelo estava sem a carteira de motorista e além disso  eu sem qualquer documento estava cometendo uma infração grave e ainda mais completamente careca o que, junto com meu amigo, poderia indicar sermos fugitivos de algum presídio.  

Do lado de fora  ouvíamos o choro das meninas no carro... 

Por que isso ? - um dos guardas perguntou apontando para as nossas cabeças..
Passamos no vestibular. - respondemos
Em que ?
Em engenharia - Marcelo respondeu e emendei respondendo também que esse era o meu curso, com medo que eles não soubesse o que era "Ciência da Computação".

No meio desse diálogo tenso Marcelo teve um "insight" extraordinário, sangue frio espantoso e que mudaria completamente o rumo da conversa (que tendia a nos levar à delegacia...).

- Nos ajude que nós os ajudaremos - falou como um adulto experiente, apesar de tremendo não se segurar nas pernas. A frase estava lá recolhida em sua mente, hibernando,  e do nada surgiu a senha que nos tiraria da delegacia.

O que parecia ser o líder o chamou para um cantinho perto de uma árvore. Por instinto (o mesmo da recuperação  da senha) Marcelo estirou a mão, trêmula, já com a propina (hoje em torno de uns 200 R$ - sua mesada da semana) bem escondida e dobrada entre os dedos e num gesto de bem vindo apertou a mão do policial. 
Seu gesto foi extraordinário, primeiro pela audácia e segundo por desembolsar em causa perdida toda sua mesada da semana e que contrariava seu perfil que seguia a linha "dinheiro na mão não é vendaval". 

Em questões de segundos os policiais nos deixaram em paz, dando tudo como "sem problemas" , encerrando com um boa noite e parabéns pelo sucesso no vestibular. 
Não houve clima para o restante da noite. As meninas urravam dentro do carro e exigiam um retorno imediato para casa (da patroa...). Foi o que fizemos deixando-as no mesmo local que as pegamos: na calçada da residência que Bolo Cozido compartilhava com seu cavalo. 

Nos recolhemos aos nosso quartos onde Marcelo teve uma noite medonha, em pesadelos buscava inutilmente uma solução para ter seu dinheiro de volta e uma bela explicação a Dr.tenório pelo triste fim da sua mesada. 

Não recebi nenhuma advertência ou correções moralistas quando alguns dias depois encontrei Dr.Tenório no Clube Português, em plena noite de carnaval, onde junto havíamos dividido algumas mesas para os quatros dias de folia. 
Com um sorriso do canto a outro da boca  me recebeu com um abraço caloroso e me fez a seguinte pergunta : "como tem passados os dias, está tudo escuro ?". 
Assim passou a me receber cada vez que o encontrava, sempre com a brincadeirinha enigmática e que possivelmente homenageava nossos queridos irmãs afrodescendente que tanto trabalharam para o crescimento da nossa pátria, desde os tempos de Brasil colonia até os dias de hoje.    




No Lanterna Verde (Nov/2015)






    
          

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