terça-feira, 10 de abril de 2012

Crônicas do Pina : Um dia com o Papa João Paulo II


                     
O dia 7 de Julho de 1980 amanheceu ensolarado e a costumeira brisava soprava quente na praia de Boa Viagem. Era segunda-feira e o Governo do Estado tinha decretado feriado em virtude da visita do Papa João Paulo II à cidade do Recife.
Nossa programação para esse dia ja estava estabelecida desde o dia anterior:iríamos caminhando pela manhã até o viaduto da Joana Bezerra onde seria rezada a misa Papal, daríamos uma olhada nos preparativos e depois voltaríamos para algum bar na avenida Boa Viagem e lá aguardaríamos a passagem de sua Santidade. Fechamos o grupo para isso: eu, Carlinhos "Galego", Alexandre "Patinhas", Anibal, Ricardo "Gordo Pinica" e o nosso amigo Francês Ajax.    

A ideia inicial era apenas tomar umas e outros mas com o decorrer do tempo perdemos o controle, da cerveja com peixe passou-se para a cachaça Pitu com caldinho, e terminamos a tarde recebendo a excomunhão da família.

A comitiva do Papa sairia do Aeroporto dos Guararapes e seguiria pelas avenidas Barão de Souza Leão e Boa Viagem, passaria pelo Cabanga e chegaria ao seu destino final no imenso descampado ao lado do viaduto Joana Bezerra.

O sol aparaceu lindo no horizonte do Pina e enquanto subia imponente os parentes iam chegando aos pouquinhos na velha casa 670. Tios e Tias da zona sul, outros do interior e outros de outro Estado. Ia se acomodando na varanda, nas cadeiras, na sala e nos quatro cantos da residência.

Por volta das 10hrs, já com todo o grupo reunido, partimos em direção ao Joana Bezerra, debaixo de um um sol inclemente que sem piedade  exalava calor por todos os lados; o asfalto ardia e a medida que nos afastávamos do litoral a brisa desaparecia e dava lugar a um abafado que soprava quente nos nossos rostos. 
Aonde passávamos percebíamos pessoas já reunidas nas calçadas, em suas cadeiras, em pé, encostadas nos muros, nas árvores, em coqueiros, em busca do melhor local. Muitas casas e estabelecimentos comerciais expunham fotos do Papa e cartazes de saudação. A cidade estava em festa ! 

Após uma longa caminhada chegamos ao local da missa e o que vimos foi o resultado de uma caminhada inútil:  uma imensa área vazia tendo no centro um palco que receberia a cerimônia.
Retornamos rapidamente e a situação de complicou: o sol brilhava sem interferência de qualquer nuvem, o asfalto estava mais quente e nenhuma brisa existia para aliviar o calor. No meio da caminhada, os rostos já estavam queimados, os pés escaldando, e exaustos, ávidos por uma cerveja, surgiu do nada uma "voz do além" (Alexandre) no meio do grupo com uma sugestão que ratificaria nosso desejo e modificaria para sempre a história desse dia: - Vamos tomar umas na Churrascaria Mocambo ??.  


A proposta foi bem aceita e nos dirigimos pra lá. 

Na churrascaria o papo rolou solto por um por tempo. Foram duas horas de bebida e animadas conversas onde discutíamos assuntos variados: da últ
ima pelada de praia jogada contra um times de malandros da comunidade do Bode onde perdemos o jogo no último minuto, quando o sol dobrava a curva do meio dia, com um inédito gol contra de cabeça feito pelo grande zagueiro de dominó, Patinhas, até o tempestuoso namoro de um dos nossos amigos do grupo ("o galanteador do Pina") com uma das meninas mais desinteressantes da região; esse namoro escandalizou todos a partir do momento que os enamorados foram vistos passeando de patins e de mãos dadas, nas tardes de domingos, numas das praças do Pina. A jovem, desfilando de shortinho e meias coloridas soquetes tipo "dancing days", exibia um ar de felicidade suprema indicando paixão, luxuria, sensualidade, ciente do seu poder único de sedução. 


- cerveja não enche barriga, vamos agora de Pitu ... ; foi essa decisão tomada por Alexandre, e ratificada por todos, que mudaria o cenário (que por hora mantinha-se calmo) e marcaria para sempre a vista do Santo Pontífice. A ideia foi catastrófica !!!

Como não havia no bar a célebre cachaça de Vitoria de Santo Antão, nosso amigo partiu célere em direção ao seu objetivo: comprar a cerveja em outro bar bar. Retornou pela rua Ondina (onde morava), atravessou a Conselheiro Aguiar e Domingos Ferreira e adentrou na favela do Encanta Moça e lá conseguiu uma garrafa em promoção na barraca de um amigo influente. Voltou feliz ao nosso encontro.... 
Aberta a aguardante continuamos num bom papo. Ajax mantinha-se firme, calmo, racional, esbaldando-se em assuntos que eram apenas de seu conhecimento de cidadão e estudande francês (cursava engenharia em Paris): dos filmes do cineasta Goddard, a vida sexual aternativa de Sartre (morto esse ano) e Simone de Beauvoir, e o fim trágico de Jim Morrison, líder da banda de Doors. 
De repente, no meio desse turbilhão de novidades existenciais despejadas pelo amigo importado, percebemos que seu semblante mudou: ficou estáticos, perdeu os gestos teatrais que o ajudavam a contar suas histórias e mirou o horizonte. Ficou lá sentado olhando o mar, o ceu, as nuvens, em transe. Percebemos que alguma coisa estava errada e como já estava perto da passagem do Papa levantamos e partimos em direção a nossa casa na 670.
Surpresa foi a nossa quando percebemos que o francês não conseguia se levantar mais, sua racionalidade tornou-se dormência, sonolência, o que indicava embriaguez completa.
Juntamos nossas mínimas forças (reduzidas devido ao alcool) e o arrastamos do bar, atravessamos a avenida Boa Viagem e jogamos na parte molhada da areia da praia o corpo já desfalecido do jovem amigo.
Enquanto conversarmos e decidíamos o que fazer com o amigo, esse levantou-se de um salto só e passou numa carreira desembestada para o mar. Mergulhou estilo "flecheiro" como se estivesse numa piscina olímpica. Na realidade era simplesmnete "beira dágua" que não dava mais de 10 cm de profundidade. Os arranhões e escoriações provocados por tamanho desatino não o deixaram lúcido mas sim completamente ambientado com o habitat, o oceano Atlântico. Estirado entre sargaços, ouriços, conchas, e um mínimo de agua dizia incessantemente a frase que marcaria uma época: "Esse é o meu mundo, esse é o meu lar, eu sou uma maria-farinha".       

Nossa tarefa de convencer nosso amigo que aquele não era o seu lar e sim fruto da sua fértil e alcoolizada imaginação não foi fácil. Depois de muito empenho e insistência o convencemos e o arrastamos para a residência de Alexandre na rua Ondina. Foi carregado e nos braços, metade apoiava o seu lado direito na altura das axilas, outra metade do grupo o lado esquerdo da mesma forma. Seus pés fizeram o rastro de sulcos horizontais que até hoje marcam o areal do Pina. 
Nosso amigo foi jogado na cama e lá ficou entre delírios e sonhos até o final da noite.     

Em paralelo, seguimos (eu e o Galego) para a 670 onde já repleta de parentes e amigos aguardavam ansiosamente a passagem de JP II.
Ao cruzarmos o portão do casarão cometemos um pequeno deslize e tropeçamos em pedras imaginárias colocadas lá pela nossa álcool-imaginação. De cara no chão, em completa vergonha, tivemos tempos apenas de vislumbrar a turba de pessoas da varanda, algumas espantadas e outras rindo, de olho em nosso estado deplorável.  




Familiares e amigos, na frente do casarão 670, aguardando a passagem do Papa.



Varanda do casarão

                                              

Resto do portão

Levantamos, um escorado no outro, estropiados, e seguimos em frente até o quintal da casa, num anexo, onde localizava-se o banheiro dos empregados com o objetivo de esfriar a cabeça com um bom banho gelado.
Em seguida subimos as escadas para a sala de almoço e na subida encontramos uma tia ex-freire que nos impôs uma descompostura e um sermão digno de excomunhão.
Alguma alma caridosa requentou um arrumadinho de charque que foi servido inexplicavelmente por Andréa (irma de Alexandre) que já estava por lá. Ela mesma nos serviu nos orientando na complexa tarefa de levar o garfo a boca e que fez, não sabemos até hoje, se por malícia ou por estar distraída mesmo, repassar a Carlinhos os restos de comida rejeitados por mim.            
Enfim, o nosso colega comeu com muita satisfação e sem perceber, o resto do resto da comida requentada. Após esse delicioso almoço voltamos as atenções para acompanhar a passagem de Carol Wojtyla pela avenida.

A varanda do casarão estava cheia e aí percebemos de imediato que não seria o melhor local para acompanhar. Observamos a calçada que fervilhava de gente e percebemos que não teríamos espaço para ficar, as melhores posições já estavam ocupadas. Então Carlinhos deu uma excelente e rocambolesca alternativa:

- Que tal se subirmos naquela caçamba abandonada na calçada ? - berrou apontando para o objeto abandonado pela prefeitura.
- Quem sabe se de lá o Papa nos ver e abençoa ?
- É pra lá que eu vou ..... - e decidido saiu correndo em direção a calçada. 



A caçamba estava uns 3 metros ao lado do poste e em frente ao
 edifício Jangadeiro (vizinho da nossa casa). 


Sem opção tivemos mesmo que subir na caçamba. Voamos pra dentro e caímos em cima de pedras, tijolos, pedaços de pau, gravetos, folhas de coqueiros, ouriços e até mesmo maria-farinha. Depois de alguns minutos em cima de toda essa natureza morta o "Galego", ainda sob o efeito da bebida, desequilibrou-se e desabou na calçada ficando aí estatelado durante alguns minutos. Milagrosamente não quebrou-se, apenas sofreu alguns arranhões e escoriações. Subiu novamente e escorado nas laterais enferrujadas se segurou como pode até o santo desfile.

O Papa desembarcou no Aeroporto dos Guararapes às 15.42hrs. Logo após partiu no seu Papa Móvel em direação a Avenida Boa Viagem numa velocidade de aproximadamente 40 km/h, atravessou toda a avenida, que já estava superlotada (inclusive por nós em cima da caçamba) e atingiu o Pina por volta das 16:45hs.

Eu e Carlinhos escorados nas paredes enferrujadas da caçamba, entre todo aquele lixo, tivemos uma visão privilegiada, uma das melhores da área, do Papa no seu PapaMóvel. Apesar de embasada e embaralhada, devido a bebedeira, até hoje essa visão nos persegue: JP II em pé no seu carros acenando para a plateia recifense do Pina. 

Finalmente fomos abençoados ! 



Passagem do papa na Avenida Boa Viagem (julho/1980).


          

A comitiva do Vaticano seguiu em direção ao pátio do viaduto Joana Bezerra onde seria rezada a missa. Após a passagem do Papa corremos para a casa de Alexandre na rua Ondina com o objetivo de saber como estava a situação do francês e chegando lá resolvemos descansar e nos preparar para um rodada final de cerveja a noite no parquinho que ficava na frente da 670. Não existia local pra todos dormir. Fiquei no quarto onde estava Ajax (que entre urros e gritos tinha um sono difícil). 
O  "Galego", não tendo mais escolha, resolveu corajosamente deitar no sofá que ficava na sala de TV e que era a sala de entrada da casa. Dormiu como um príncipe, um marajá, muito à vontade, esparramado no leito. Após algumas horas, já "babando" de tanta satisfação, a saliva escorrendo pelo canto da boca, foi pego de surpresa com a família do colega "Patinhas" chegando após ter assistido à missa.
A primeira pessoa da família a entrar no recinto foi a avó da família Patinhas, muito religiosa e satisfeita em ter participado do santo evento. O choque foi tremendo : uma família inteira (avó, pai mãe, tios, tias, etc..) chegando com o espírito abençoado pelas santas preces, deparando-se com ser inerte, babando e ruminando, completamente à vontade, de camiseta e short, pecador em potencial, no sofá principal da sala.
Segundo nos contou posteriormente Carlinhos, já encontrava-se parcialmente lúcido quando percebeu a chegada da família e notando a santa vergonha fechou o único olho que estava aberto e foi obrigado a ficar estático durante todo o Jornal Nacional e a novela das oito, simulando um sono pesado, aguardando toda a família se dispersar.

Após a sala ter se esvaziado (a família foi para a sala de jantar), ele levantou-se do sofá e não tendo onde se deitar foi para o pátio onde escorou-se no carro da família e caiu adormecido. ficou estirado lá com a cabeça debaixo do carro, o pescoço (pronto pra ser decepado) na linha do pneu e todo o corpo para fora. Foi assim que o encontramos, em cena de flagelação, 1 hr depois quando acordamos.  




500 mil pessoas em Joana Bezerra, no Recife

À noite estávamos todos recuperados para o espetáculo da mulher que virava macaco, a símia Monga ou Monka, evento que se desenrolaria no parque de diversões (visualizado ao fundo na foto da passagem do Papa) que periodicamente teimava em se instalar defronte da nossa casa....


Considerações finais:

As pessoas e situações descritas no texto são reais. Os diálogos, em alguns casos, em virtude de todo o tempo passado, não correspondem integralmente aos ocorridos na época. Foi necessário então redefinir e inserir algumas palavras e frases, de acordo com as ideias e costumes de cada um nesse tempo, visando assim deixar o  texto mais atraente.





















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