quinta-feira, 28 de julho de 2016

As Estranhas no Ninho




Introdução.


  Os deuses do Candomblé, os Orixás, trabalharam bastante para acudir as quatro amigas baianas no fatídico dia em que seu professor de "Psicologia do Consumidor", do Curso de Comunicação Social, teve a infeliz ideia de sortear para um trabalho, que seria a última nota da disciplina, uma lista de doenças da "psique humana".
A nuvem negra pairou nas suas cabeças, a roleta russa girou, e as desventuradas foram escolhidas para pesquisar a respeito da esquizofrenia.

A dica do professor (que não poderia ter sido pior...) foi fazer uma visita ao manicômio Juliano Moreira.

Cíntia, Marley e Jessica surpresas e preocupadas, com a tarefa maluca num ambiente de tresloucados, não tiveram outra opção e organizaram-se da melhor forma possível para o desafio.
A "casa de repouso" localizava-se numa região de difícil acesso, nos confins da periferia de Salvador, então Cíntia pediu ajuda sua tia Nádia, que era muito bem informada, tinha uma bússola na cabeça e conhecia todas as linhas de ônibus, para lhes guiar ao inglório destino.

O terreiro de candomblé de mãe menininha bateu os atabaques e sua Lyalorixá iniciou os trabalhos ordenando seu Axogun (O Sacerdote) a decapitar a primeira galinha em oferenda à quem quer que fosse.
Os orixás foram chamados à labuta: Xangô foi acionado, que em seguida chamou Oxóssi, que implorou por Óba que levou junto Oxalá e esse de quebra arrastou Iansã.

Num belo dia ensolarado de verão, enquanto algumas ladeiras estavam sendo lavadas, o Olodum fazia seu ensaio semanal, e o dito terreiro trabalhava ininterruptamente, as jovens partiram em direção ao manicômio e transformaram uma simples tarefa de faculdade numa delirante história que virou lenda desde então.
Desse dia em diante elas passaram a crer na teoria do "Eterno Retorno" do aloprado Filósofo Alemão Friedrich Nietzsche. 
Um dos aspectos da teoria diz respeito aos ciclos repetitivos da vida: "estamos sempre presos a números ilimitados de fatos, que se repetiram no passado, ocorrem no presente e se repetirão no futuro". Enfim, assim foi, assim é e assim será, eis a sua lei ... 



 Capítulo 1 - É proibido fumar.


   Chegando ao manicômio Cíntia apresentou-se na recepção explicando o motivo da visita e as demais do grupo a aguardaram na mesma sala. Nesse meio tempo Nádia, fumante descontrolada, acendeu seu cigarro, relaxou e aguardou pacientemente o início da visita. 
A recepcionista reparou e disse  que era perigoso fumar no ambiente porque a maioria dos internos tinham vícios de alcoolismo e tabagismo o que poderia provocar uma reação em cadeia com efeitos inesperados nos ditos "hóspedes".      

Os orixás são ancestrais divinizados africanos que correspondem a pontos de forças da natureza, por exemplo: Oxossi das florestas e matas, Ayrá dos raios e ventania, Oxumaré da chuva e arco-iris , Xangô responsável pelo fogo, etc.  
Esse último recebeu um chamado de urgência, apresentou-se, perambulou pelo ambiente e percebeu que teria que agir. 

Nádia, despreocupadamente, continuava no seu incorrigível ritual tabagista espalhando fumaça para os quatro cantos da sala. O aumento da temperatura e os fluidos energéticos emanados da  ação "acender cigarro" fez Xangô aproximar-se do recinto e circundar a fumante. 
Cíntia correu em direção a tia e alarmada alertou do perigo e refez a recomendação da recepcionista. Infelizmente  não houve tempo para qualquer ação preventiva pois ao concluir sua recomendação aconteceu o que poderia ter sido evitado:
surgiu correndo de um dos corredores uma mulher de mais ou menos uns 40 anos, de roupa branca, cabelos desgrenhados, olhos esbugalhados em órbita e foi se aproximando, se aproximando, e se aproximando...   

A  fumante só sentiu o tabefe na cara: PATAFFFFFFFFFFF .... e quase desfalecida sentiu um terrível zummmmmmnnnn no ouvido e um queimar terrível no lado direito do rosto. A desvairada arrancou o cigarro da boca de Nádia, deu um empurrão e saiu correndo pro mesmo lugar de onde tinha vindo. Os enfermeiros saíram correndo atrás e ela desapareceu pelos corredores adentro.

Na cara da tia Nê ficou a marca da fúria da antitabagista desvairada e isso já bastaria para que o grupo recuasse e corresse ao professor suplicando por uma outro tarefa menos estressante. Mas não, elas foram em frente, resolutas, empurradas pela roda-viva do destino.

Nuvens negras e carregadas as seguiram para a próxima etapa...   



Capítulo 2 - Entre as grades


  Após o bofete as jovens continuaram a excursão;  percorreram um longo corredor principal, com portas fechadas dos dois lados, e em seguida desviaram por outros corredores. À medida que caminhavam iam surgindo portas com grades indicando que nesse espaço deveriam estar os internos mais problemácos.

Quem assistiu ao filme de 1980 "The Shine" - ou pra nós aqui no Brasil  "O iluminado", com certeza estaria lembrando dos tenebrosos corredores do hotel Overlook, onde o personagem principal, interpretado brilhantemente por Jack Nicholson, percorria desvairadamente em busca das suas duas vítimas, a mulher e o filho.  

 Quando atravessavam um dos corredores Cíntia ouviu uma voz chorosa partir de dentro de um desses quartos gradeados. Apesar dos alertas da enfermeira tomou a decisão que mudaria o rumo da história e confiante aproximou-se da grade e deu um bom dia, bem educado:


- Boa diaaaa !!

O hóspede surpreso com a atenção retribuiu: 

- Bom diaaa jovem, a seu dispor !

Cíntia retribuiu:

- O senhor gostaria de ......

Antes de completar a frase o dito esquizofrênico iniciou uma impressionante e lúcida descrição da sua situação:

- Querida, que bom que você veio me tirar daqui, eu sabia que esse dia chegaria, estou recuperado, minha doce amiga, cadê a chave, você trouxe né ?! graças que os Orixás não me esqueceu.

Cíntia impressionada e sensibilizada pela educação e tranquilidade do senhor foi se aproximando das grades com lágrimas nos olhos de emoção.

- Sofri muito, passei parte da minha vida aqui. Me esforcei, tomei os remédios, estudei muito, orei, serei um novo homem. Guiarei a vida de outros graças hoje ao meu aprendizado nessa santa casa.

Cíntia agarrou com suavidade a grade e comovida, coração nas mãos, aquele aperto no peito, escutava atentamente o falatório do ilustre desconhecido aproximando-se da grade.

Ao chegar a grade o santo homem transformou-se, agarrou os braços de Cíntia, mudando de polaridade (os esquizofrênicos mudam repentinamente de humor e na maioria das vezes, ao contrários dos só bipolares, tornam-se agressivos e perigosos) e os puxou por entre as grades pra dentro do quarto vindo junto também o rosto e o corpo da nossa amiga. 

Começou um escândalo infernal. Ele gritava de um lado e Cíntia de outro:

- VOCÊ VAI ME TIRAR DAQUI, EU NÃO SOU LOUCOOOOO, EU SOU NORMAL, ME LEVA DAQUI CRIATURA ....EU QUERO É SAIR... .VOCÊ ENTRA E EU SAIOOOOOOOO !!! 

A voz aterradora uivava no corredor.

Os braços da jovem ralavam nas grades, a cabeça batia no ferro, o corpo estropiado esfregava-se nas barras paralelas.

Cíntia berrava:

AI MINHA MÃE MENINHA, MEU BABALORIXÁ DO RIO VERMELHO, MEU XANGÒ, MEU OXOSSI, ME AJUDA, NUM QUERO MORRER AQUI NÃOOO ......


Os gritos endemoniados do louco ecoavam pelo corredor juntamente com os berros aterrorizados de Cíntia. Num vai-e-vem danado: Cíntia puxando pra fora os braços e o doido fazendo o inverso. 

Os atabaques do terreiro da mãe menininha batiam mais forte, dando ritmo ao axé   possibilitando assim uma melhor incorporação dos Orixás......

A luta continuou entre gritos e impropérios dos dois lados. Cada um que berrasse mais alto.

Um enfermeiro correu em auxílio da jovem que se esperneava entre a grade e as mãos do senhor enfurecido. rapidamente abriu a porta e desatracou os escoriados braços de Cíntia das fortes mãos do desenganado hóspede que continuou berrando por um bom tempo. 

Cíntia foi arrastada lívida de terror para uma área reservada onde depois de um tempo tomou folego, energizou-se, os atabaques da mãe menininha rufaram, e continuou sua jornada guiando sua equipe para novos eventos que confirmariam o  "Eterno Retorno" do alemão desvairado. 
 

CAPÍTULO 3 - Oh ! Jéssica.

 


  As estudantes continuaram sua caminhada pelos corredores e a nuvem negra as seguiu por todo os espaços do hospital psiquiatrico; lá dentro o dia continuava escuro.   

Após saírem de um dos andares ouviram uma voz bem fininha chamando por uma pessoa mas inicialmente não entenderam por quem. A voz foi aumentando, aumentando e finalmente com muita nitidez ouviram:

- Jéssica, Oh !  Jéssica

- Jéssica, Oh ! Jéssica 

 Ei, Jéssica, alguém tá te chamando - disse Cíntia.

- Eu não, não conheço ninguém em manicômio - respondeu Jéssica

A voz do além continuou: 

- OH ! JEEEEESICA, OH ! JEEEESSICA, VOCÊ VEIO ME BUSCARRRRRRRR .... ??

- olha aí Jessica, é com voce mesma - Disse Cíntia.


Foi aí que Jéssica reconheceu a voz e dirigiu-se à esquina do corredor para confirmar o que já sabia. Voltou espantada e contou que sua ex-empregada doméstica era agora uma das internas. Ela tinha trabalhado na sua casa anos atrás e tinha sumido, após uma folga domingo, e não deixou qualquer vestígio de sua alma até então. 
As buscas. foram em vão, seus parentes percorreram todos os quatro cantos da cidade durante três meses, os 1.165 terreiros catalogados foram vasculhados milimetricamente, de Abá Fujá ao Abaça de Axé, da Zazi Mucundê ao mais famoso de todos, da mãe menininha do Gantois. Mas Jéssica nunca mais teve notícias sua.

O desgovernado do Nietzsche, que várias vezes foi internado na sua conturbada vida,  acertava em cheio.

As garotas saíram com os corpos carregados, pesados, arrastando-se, a procura de uma "Defumação de Descarrego" afim de aliviarem suas almas.

 
Capítulo 4 - Como no tempo do velho Oeste. 

  
   Ao sair da casa de terror alguém sugeriu um lanche e um café no local mais próximo e por uma dádiva do destino e do filósofo  encontraram uma lanchonete a poucos metros do hospital.  

Sentaram-se na primeira mesa que encontraram, bem ao lado da porta de entrada, pediram pão com queijo e café. Era a única mesa ocupada, além delas a população se restringia ao garçom e o atendente, onde num balcão mal cuidado arriscavam um sonolento, sofrível e interminável  jogo de domínó. 
O pedido foi atendido depois de muita insistência e o café com pão trouxe de volta um cheirinho caseiro que fez as meninas esqueceram as desventuras da terrível casa de recuperação.

Seguindo um roteiro dos filmes de velho oeste um terrível barulho partiu da  entrada da lanchonete e viu-se um estranho jovem dando os boas vindas com um chute porta adentro. 

Novamente o "Eterno Retorno" chegava com todas as forças do Kiumba Caveira (Espírito do mal no Candomblé).

O sujeito, alto, forte e louro, e com cabelo baixo, chegou gritando impropérios, alucinado, babando, olhos vermelhos e aboticados e com um revólver na mão:

- QUEM QUER MORRER QUE DÊ UMA PASSO À FRENTE, EU MATO TODO MUNDO !

- HOJE EU MATO UM ! 
 
- QUEM SERÁ O PRIMEIRO ? - e olhando as meninas, completou - OU A PRIMEIRA ?

- KKKKKKK

- MEU DEDO TÁ COM UM TIQUE-TIQUE NERVOSO ... HAHAHAHAHA

Começou a circular, como um leão faminto, dando voltas entre as mesas e o balcão de atendimento, bufando, revólver na mão, e repetindo a mesma reza: eu mato , eu mato , eu mato. 
Só existia a porta da frente como emergência para uma fuga  e o maluco a bloqueava, então o que restou foi esperar pelo pior: tanto as meninas quanto os dois funcionários aguardavam sua vez para conhecer o Orum..

No Candomblé o mundo que vivem os homens, o mundo dos vivos, é chamado de Aiê, e o mundo do sobrenatural, o "paraíso", onde estão os Orixás, as divindades e os espíritos bem aventurados, e onde vão os que morrem, é chamado de Orum. 
Pode-se retornar ao Aiê renascendo e aí o ciclo continua, num vai-e-vem eterno entre o Aiê e o Orum,.até atingir a iluminação completa e se estabilizar no Orum.

As jovens não tinham a intenção de ir para o Orum tão cedo e aterrorizadas olharam nos olhos do louco que percebendo a atenção iniciou um diálogo surreal: 

 
- EU QUERO É MANDAR GENTE PRO INFERNO -  a alça do gatilho balançava entre seus dedos.

- Calma meu senhor, paz na terra aos homens de boa vontade - Cíntia lembrou das missas dominicais da infância.   

- CALMA NADA, VOU CUSPIR BALA, ARRANCAR O COURO DE UM ... KKKKK

- Mais moço por que isso ? - Nádia ainda com a marca do bofete questionou. 

- NUM SEI, ACORDEI MEIO ASSIM, E SE TIVER TATUAGEM VAI CHEGAR MAIS RÁPIDO NA CASA DA BESTA. . kkkkkkkkkk

 
Desesperadas Cíntia escondeu a sua bela tatuagem na nuca soltando o cabelo e Marley colocou as pernas para dentro da mesa tirando da vista a sua também.

 
- E SE NÃO FOR PROFESSOR VAI LEVAR DUAS BALAS AO INVÉS DE UMA , E ANTES DISSO TIRO UMA LASCA DE COURO DAS COSTAS SÓ PRA JUDIAR....KKKKKKK.

- QUAL A SUA PROFISSÃO ? - perguntou a Cíntia

- Professora de Ciência.

- E AS SUAS ? - perguntou as demais meninas

- Professora de Biologia, História e Matemática - responderam as outras percebendo que a resposta de Cíntia seria a chave da salvação.

O doido relaxou:

- Que ótimo, vou levar vocês lá pra casa, meus filhos estão precisando de aulas de reforço.. 

O dono do bar intercedeu;

- Deixa as meninas sairem rapaz, num tá vendo que elas são professoras ?!

O louco varrido foi se acalmando e mudou repentinamente  de papo afirmando que agora teriam sua proteção e que poderiam ir embora sem ser molestadas por viva alma. Ficassem descansadas, suas almas estariam protegidas.
As meninas aproveitaram o momento de fraqueza do Django e pulando das cadeiras saíram em disparada porta afora, mundo adentro, seguidas pelo pistoleiro.

A fila indiana saiu com Cíntia coordenando o grupo e o tresloucado na retaguarda de olhos virados de um lado para o outro em busca de qualquer engraçadinho que se metesse a besta com as belas garotas filhas de Iansã.
De repente surgiu duma esquina obscura, dos quintos do beco sujo, um malandro metido a palhaço com piadinhas indecorosas em direção as jovens. Como era de se esperar o filho do Kiumba não estava com sorte, porque bastou o segurança desregulado perceber a brincadeirinha, levantou a mão e largou o primeiro tiro, os dois saíram correndo, um atrás gritando e atirando com sua lança de fogo enquanto o fugitivo desembestado na frente pedindo socorro.

- VOU TE MATAR CRIATURA DAS PROFUNDEZAS, SEGURA O FOGO QUE TÔ CUSPINDO BALA .. KKKKKKKKKKK  

- EU NÃO DISSE QUE MATARIA UM HOOOJE !!!!???

Os gritos repetiram-se por muitas vezes ... 

As meninas percebendo a chance saíram em disparada pro lado contrário do barulho, pernas pra quem te quero, pra longe da nuvem negra, distante dos terreiros assediados pelo Kiumba e pela Pomba Gira,  em disparada buscando o porto mais próximo para ancorar, o do Ilé Axé Oyakayodê !

Lá, os trabalhos de descarrego das emanações do mal seriam executados, extirpando-se definitivamente as nuvens negras que pairaram durante todo o dia, e assim a teoria do filósofo alucinado seria esquecida e ficaria apenas lembrada nos livros de introdução a filosofia. 




- Conclusão :


Poderia ser ficção, fruto da imaginação e criatividade de algum autor de crônicas do cotidiano ou até mesmo da própria Cíntia que nos relatava. 
Por mais surpreendentes que se pareçam as aventuras descritas são reais. Os personagens também. As desventuras em sequências passadas pelas jovens baianas são surreais e mereciam ser registradas de alguma forma. E assim foi feito !   
Numa noite fria da cidade de Foz do Iguaçu,  entre um vinho e outro, ao lado das queridas amigas Cíntia e Nadja, destrinchamos o caso, palavra a palavra, frase a frase, pedimos mais, precisávamos de detalhes, queríamos tudo. 
Trocamos e-mails, replicamos, e as respostas foram melhores do que esperávamos e o resultado tornou-se esse texto. 
Finalmente descobrimos que a nossa amiga Cíntia, aqui e agora, é uma excelente contadora de histórias ; uma verdadeira Forrest Gump.