sexta-feira, 20 de junho de 2014

Churrasco de Coelho



- E ai pessoal, vamos fazer um churrasco de coelho ?
- Churrasco de que mesmo, coelho ? onde já se viu isso, tá maluco !!?
- Sim, churrasco de coelho, por que, nunca viu um coelho na vida ?
- Sim claro, coelho sim, mas churrasco não.
- E aí, vamos nessa ?
- Estranho isso...... de coelho !!!???

Foi mais ou menos esse o papo que ocorreu no final dos anos 70, no Pina: Carlinhos foi iluminado por uma ideia extremamente esquisita mas, segundo ele, brilhante. O papo continuou:

- Sim, coelho, coelho, carne branquinha, bacana, vamos nessa ?
- Tá doido cara, isso deve ser caro demais ...

Alexandre replicou justificando sua situação de completa falência (seu crédito educativo, que supostamente usava para custear seus estudos, não tinha sido creditado ainda..)

- Que caro que nada meu amigo, vou conseguir de graça !
- De graça, duvido, diz lá, que trambique é esse .. ?
- Tenho amigos influentes ..
- Num  vai dizer que teu amigo é mais importante que o meu do aeroclube ..??!!
- Aquele lá nunca comeu churrasco na vida, imagine de coelho....!!! hahahaha
- Sim, diz donde é esse coelho...
- Da granja de Jacoca ..
- Que é isso, Jacoca ? parece coisa de índio ..
- É a granja dos meus parentes, fica lá pelas bandas de Moreno ..
- Quantos coelhos você vai trazer ?
- Muitos, muitos, vai dar para fazer um monte de tira-gostos...vai rolar uma farra boa...
- O que significa muitos, uns 20 coelhos pelo menos ?
- Por aí, por aí, mas deixa eu fazer o contato com o porteiro da granja.
- Porteiro, você não falou que eram teus parentes ??!!!
- Ah, desculpe, sim, parentes...

Em pouco tempo o papo acima tinha se oficializado e a história correu os quatro cantos da cidade; o vento com a novidade soprou na rua ondina no Pina, passou num apartamento no final da avenida Conselheiro Aguiar,  retornou para o norte até a Tamarineira e terminou numa leve brisa na avenida Boa Viagem 670, onde morávamos. Foi aí que se desenrolou o acerto final do encontro: qual seria a bebida que acompanharia os coelhos e onde  seria o local do evento.

Na nossa residência existiam, naquele final de década, duas garagens: uma construída junto com a casa, em 1936, e a outra bem mais nova e feita para abrigar nosso carro nas duas vezes que estivemos morando por lá, entre 1967-71 e 1977-81. Decidimos fazer o evento na garagem "mais nova" e acertamos que poderíamos dividir os custos e comprar cervejas para acompanhar os coelhos; "Brahma ou a Antactica", não importava, o que viesse vinha bem..




A famosa 670 na época da sua construção.


Precisaríamos resolver um problema crítico: onde armazenar e gelar as cervejas. Não tínhamos qualquer frigobar ou coisa semelhante, e comprar isopor demandaria mais um custo o que tornaria inviável o projeto. Enfim, era necessário urgente uma excelente infra-estrutura. 
Aline então nos apresentou uma ideia iluminada: "Sérgio tem uma serpentina que gela qualquer cerveja em questão de minutos".
- Serpentina ?! que troço é esse, é uma geladeira ambulante ? - falei....
- Claro que não, vocês são pobres mesmooooo ; é um balde grande de aço, onde dentro existem cabos também de aço; o gelo é colocado dentro do balde misturado entre esses cabos, a garrafa de cerveja é acoplada de cabeça para baixo num bocal que fica fora do balde e o líquido automaticamente navega nesses cabos gelados e sai numa torneirinha tipo barril de chopp; a cerveja fica supergelada...



Serpentina

- Mas isso é caro ? - Alexandre sempre preocupado com o custo... 
- Para quem está acostumado, segundo dizem por ai,  com Praia Lanche, Telhado Azul, Feijoada do Leopoldo, O Veleiro, Peixada do Lula, Maxime e Bar do Erasmo, é caro mesmo, mas para vocês será de graça já que iremos participar do evento (se autoconvidando..).   
- Opa, fechado, topamos !!! - Alexandre se adiantou, muito satisfeito, e todos concordaram...  
     




Bar do Erasmo - na esquina da rua Ondina com a Capitão Rebelinho, no Pina. 


No dia acertado todos os convidados chegaram no horário pré-estabelecido (qualquer hora da manhã após o café e antes do almoço...), ansiosos pelos coelhos prometidos e pela última maravilha do século : uma serpentina que gela cerveja em minutos.

Ah, os ditos "convidados" !!!, esses jamais poderiam ser chamados dessa forma pois estavam presentes na velha 670 todo domingo, fazendo chuva ou sol, tendo Coelho ou não, eram eles: Ivan e seu Opala branco, Sérgio e seu fusca, Aníbal e seu corcel branco, Carlinhos também montado no seu corcel e finalmente Alexandre no seu meio tradicional de transporte, a pé (seu adorado fusca branco nunca funcionou desde o dia que constatou-se plantas crescendo no seu interior ...).

Especialmente nesse dia  achamos estranho Carlinhos não ter chegado cedo, como era seu costume todos os domingos...

O sol já brilhava intensamente, a brisa aliviava o calor, a praia desse vez estava em segundo plano, os holofotes estavam ligados e apontados apenas para os coelhos.
Por volta das 11.00hs chegou Carol, como convidada especial de Marta (não sabíamos desse convite mas como a previsão do nosso amigo seriam "muitos, muitos coelhos", relaxamos....) acompanhada de uma prima para lá de esquisita fantasiada de hippie.

O acampamento estava armado na garagem: arrumamos bancos, esteiras, tocos de coqueiros, facas , garfos, colheres, e mais alguns utensílios básicos, enfim  a festa tomava forma...
Primeiro contratempo: Sérgio armou a serpentina, preparou o gelo, pegou a primeira cerveja e fez o primeiro teste, que deu "nagativo" , cadê a cerveja sair gelada.. ?!
Apreensão geral na garagem. Alexandre tomou a frente e inspecionou o aparelho (atitude  que não ajudava em nada pois essa não era sua especialidade...) e constatou o óbvio, a maquininha não gelava.

Sérgio continuou averiguando o aparelhinho.....

Enquanto isso mais uma ameaça soprava no interior da garagem: 

- Cadê Carlinhos, tá caçando os coelhos ? - Marta gritou.
- Foi buscar na casa do porteiro da granja - outro soltou mais um gracinha ..
- hahahahahahaha , risadas nos quatro cantos da garagem

De repente, boas notícias:

- Opaaaaaa, agora vai, a cerveja gelouuuuuu - gritou Sérgio.
- Obaaaaaa, já era hora, faz favor, afinal pagamos caro por tudo isso !!! - Alexandre berrou de um lado se esquecendo que não tinha gasto um centavo na empreitada (apenas tinha dividido os gastos com a cerveja...).

A serpentina a todo vapor, respeitando suas atribuições técnicas, despejava a cerveja de copo em copo, minuto a minuto, supergelada. O calor insuportável da garagem (um quadrado, com três lados fechados e um aberto que era a passagem do carro - com cobertura de zinco e palhas de coqueiros) tornava o recinto uma estufa o que obrigava o aparelhinho a trabalhar no seu limite.

Conversa vai, conversa vem, e nada de Carlinhos. A manhã passava, o meio dia se aproximava, e o nosso amigo não aparecia.
De repente ouvimos um cantar de pneus e nos deparamos com um corcel beje entrando  desembestado pelo portão, chutando poeira para todo o lado; era Carlinhos....

A casa não tinha jardim, pelo menos nessa época da sua quase aposentadora, apenas terra batida e musgos, além de toiceiras, urtigas, papoulas, chique-chiques e uma grande quantidade de ervas  improdutivas que serviam de alimento às lagartixas. Toda essa fauna e flora era o  caminho que interligava o portão à garagem.

Após atravessar esse ecosssitema o carro foi estacionado por trás do local onde seria palco do churrasco.

- E ai galeraaaa, cheguei com o que tinha prometido, o coelho !! - berrou Carlinhos
- O coelho ???!! não seria os coelhos ?!!! - Alexandre gritou, sempre alerta em relação a comida ou bebida.
- Sim, é, corrigindo, "os coelhos" ..

Carlinhos desceu rapidamente e o observamos carregando um constrangedor saco de Bompreço meio preenchido com algo que não tínhamos ideia do que seria. Rapidamente entregou a encomenda para Alexandre e dirigiu-se para  a fila da serpentina que trabalhava a todo vapor ou melhor a todo gelo.

- Que POR$AAAA é essa ???!!!! gritou Alexandre ao abrir o saco
- Os Coelhos - gritou Carlinhos de dentro da garagem
- Que coelho é esse cara  isso parece umas codornas desnutridas - Alexandre nervoso replicou.
- Fica frio veio, dessa vez tive um contratempo na granja e meu fornecedor só arrumou os filhotes de coelhos, na próxima vem os pais dos pequeninos.
- Eu queeeero os coelhos, tô morrendo de fome.
- Que nada Alexaandre, você sempre foi  do lema de que "comida é vício e bebida é necessidade" e agora vem com esse drama , fica na tua, relaxa e aproveita enquanto ainda tem coelho no saco, hehehehehehe..

O papo descambou para berros e impropérios contra o fornecedor das lebres que jurava que na próxima vez garantiria uns coelhinhos maiores. A confusão estava armada e durou uns minutos, porém aos poucos os gritos se amenizaram com a chegada de batatinhas fritas, azeitonas e salsichas, dentre outros tira-gostos, graças a ação providencial de Marta e Aline que tinham   acabado de assaltar a despensa da casa.
O resultado das codornas no espeto foi extremamente constrangedor: após assadas se tornaram menores competindo em tamanho com os tira-gostos arrumados na última hora.

Entre uma cerveja e outra, papo ia, papo vinha, surgiram as aventuras do aeroclube, os encontros com a Família Adams e o namoro inexplicável (com direito a passeios em parquinhos no Pina..) de um dos nossos amigos com uma das parentas da dita família, as farras dos embalos de sábado à noite na boate Malibu e a mais famosa de todas as aventuras: "uma manhã com o papa".
o Tempo passava, as historias tomavam volume, mais detalhes eram acrescentados e o que eram apenas simples acontecimentos tornaram-se lendas.
No final da tarde quando não se esperava mais ninguém eis que surge o último convidado: um fusca bege cruza o portão e bem devagarinho - em marcha lenta , no ritmo do dono - aproximou-se do que restou do churrasco (apenas algumas cervejas e nada mais de tira-gosto).
Agora era Marcelo, perdido no espaço e no tempo, descia lentamente do carro, meio trôpego (como se já tivesse bebido durante toda a manhã...) e nos saudando com um boa tarde que não deixava dúvida: "esse cara bebeu durante todo o dia ..."

- Boa tarde amigos !! (voz embolada e sonolenta...)
- Chegou na hora companheiro, estávamos esperando você para começar a festa , hahahaha - Alexandre brincou...
- Cadê as cervejas, e os coelhos ??
- Cervejas só tem o restinho que tá dentro do balde, já as codornas que Carlinhos arrumou só tem as patinhas torradas - hehehehe - brincou Aníbal dando o ar de sua graça...
- Deixa de onda vocês, só vim porque me falaram que o negócio aqui era bom mesmo...atrasei um pouquinho porque estava com a namorada : ela faz Medicina na UFPE...
- Mentira Marcelo, tu nunca tivesse namorada desse nível, diz lá, tudo tava era com alguma doméstica da rua do Abaeté .. - replicou Carlinhos bom conhecedor da vida pregressa do nosso amigo.
- Sou outro homem agora, larguei meus amigos da região, faz tempo que não vejo o "gordo ´pinica", "bolo cru", "careca" e "Oda" , agora sou um quase Engenheiro Elétrico e preciso mudar de vida.
- Mudar de vida, rsrsrsrsrs !!! agora ele largou "pano branco" e agarrou-se com Gorete, a doméstica vizinha de Zé - lembrei desse detalhe.
- Se ele mudou de vida vamos leva-lo então para o Aeroclube, lá uma vida nova o aguarda, quem sabe ele não mantém "um relacionamento intenso" com a amiga da amiga da empregada doméstica da casa de Helena, assim como um dos nossos amigos o fez um tempinho atrás - hehehehehe - Alexandre relembrou mais um fato constrangedor das nossas histórias.

A brincadeirinha continuou tendo Marcelo como centro da conversa. No fim das cervejas, dos  "coelhos" e da tarde de domingo que já mostrava um sol cansado, decidimos que teríamos de continuar a farra noutro local; fomos então para a casa de tio Ciro jogar Vôlei.



A rua do vôlei (a rede ficava armada na posição das árvores) tendo o prédio de Tio Ciro ao lado 


Chegamos em piedade ao entardecer; a rede para o jogo já estava pendurada entre os dois postes laterais da rua, e a equipe adversária (minhas primas Cátia, Neide e Sandra e mais alguns amigos) devidamente preparada já nos aguardava batendo bola..
Percebi que seria uma partida sofrida pois o bando de estropiados, após uma manhã de cervejas e "coelhos", debaixo do forno que tinha sido a garagem, tinham exaurido os últimos vestígios de poder muscular. Nosso time a principio não contaria com Marcelo (na verdade isso não era nenhuma vantagem...) que extenuado não tinha conseguido descer do seu carro e jazia inerte com a cabeça no volante. Deixamos o amante latino das domésticas no seu sono restaurador e iniciamos o jogo.
As partidas, em setes reduzidos até 15 pontos, foram jogadas em sequência de 1 set, e assim permaneceu por um bom tempo e por mais incrível que pareça suportamos bem o ritmo desenvolvido pelos adversários.
A sequência de jogos foi encerrada prematuramente devido ao um fato inusitado: nosso amigo que estava desfalecido  dentro do carro despertou repentinamente e, não sabemos até hoje o motivo, ligou o carro, ativou seu pisca alerta, passou a 1ª marcha e veios se rastejando em direção a quadra parando apenas quando sinalizamos que ele estava invadindo nosso território. O fusca bege estacionou na linha divisória da quadra marcada a giz e para espanto de todos o motorista voltou ao sono profundo apoiado no seu travesseiro volante.
O jogo foi encerrado definitivamente logo após a inesperada interrupção. Acordamos Marcelo aos solavancos e por incrível que pareça despertou lúcido, falante e disposto, segundo suas palavras, a compor um novo time para a próxima partida.
Essa próxima partida jamais ocorreu. Despedimos de todos e voltamos ao Pina a procura de uma bar para encerrar o atribulado dia, jurando que não aceitaríamos qualquer tira-gosto que nos lembrasse coelhos, lebres, codornas e afins. O escolhido foi o bar "O Veleiro" em virtude do seu vasto cardápio de batatas-fritas....



Cartão Postal Recife O Veleiro .
O Veleiro Bar (Avenida Boa Viagem